Publicação compartilhada do site CRÍTICA NA REDE, de 11 de Setembro de 2023
O que me fez filosofar?
Por Colin McGinn
Tradução de Célia Teixeira
Nasci em 1950, cinco anos depois do fim da segunda guerra mundial, em West Hartlepool, no distrito de Durham, numa pequena cidade mineira no nordeste da Inglaterra. O hospital em que nasci era um albergue convertido, ou, como diríamos hoje em dia, um asilo para pessoas sem abrigo. A minha mãe tinha vinte anos, o meu pai vinte e seis, e eu era o primeiro filho. Os meus avôs — que se chamavam ambos “Joseph”, como o meu pai — trabalhavam nas minas de carvão; assim como todos os meus tios à excepção de um, que era carpinteiro e pedreiro. A esperança média de vida dos mineiros era baixa, e os meus avôs morreram os dois novos, com doenças profissionais. Todas as pessoas na minha família eram baixas, magras e robustas. O meu avô paterno era conhecido na mina como “Joe, o agitador” pelas suas actividades na luta por melhores condições de trabalho; acabou por se tornar secretário do sindicato local de mineiros, e lia Karl Marx e Rudyard Kipling nos tempos livres. Era um homem amável e distante, não muito dado a conversas, que adorava os seus cigarros sem filtro. Não me lembro de ver uma única vez a minha avó, pequena e de voz aguda, que praguejava constantemente, com dentes; mastigava carne com as gengivas. Fazia parte da sua maneira habitual de falar dizer “vós” e “ides”, como “Vós conheceis Jack Ridley”. Sobre uma faca cega, diria coisas como “Poderia ir a Londres montada de cu ao léu nisto”, terminado com uma risada rouca e aguda. Não tenho qualquer memória do meu avô materno, apesar de a sua viúva permanecer miraculosamente viva com noventa anos. O meu pai abandonou a escola aos catorze anos e foi para as minas, tendo como primeiro trabalho retirar pedras do carvão, à medida que este passava por um enorme tapete rolante. Mas rapidamente fugiu a esta forma de enterro prematuro, e foi para uma escola nocturna aprender construção civil. Foi suficientemente proficiente para se tornar administrador-geral de uma pequena companhia de construção, ainda na casa dos vinte anos, e fez carreira como administrador de várias secções do departamento de construção da cooperativa, em diferentes partes da Inglaterra. Reformou-se cedo e tem agora uma segunda profissão como pintor, pintando sobretudo paisagens das cidades mineiras onde cresceu. Alguns dos seus trabalhos encontram-se no registo histórico da galeria que serve a área que as suas pinturas retratam. Os meus dois irmãos, Keith e Martin, também são artistas, apesar de eu nunca ter sido muito bom nesse departamento.
Não guardo qualquer memória dos meus primeiros três anos no nordeste da Inglaterra; quando tinha três anos, mudámo-nos para Gillingham, em Kent, no sudeste. Que diferença fazem quatrocentos e oitenta quilómetros. Kent é conhecido como o “jardim de Inglaterra”, enquanto o distrito de Durham era um local com montes fumegantes de escória, ruas estreitas e inclinadas, e casas de banho exteriores geladas. Em Gillingham, tirei partido das florestas e dos campos, ganhando um especial interesse pela vida selvagem — em particular, lagartos e borboletas —, crescendo o suficiente para me tornar o mais alto McGinn de que havia registo (tenho um metro e setenta) — até o meu gigante irmão mais novo me tomar o lugar, com um impressionante metro e oitenta. Aos onze anos, fiz o mal afamado exame da quarta classe, um exame escolar para determinar em que tipo de escola iremos passar o resto dos nossos anos escolares, e não me saí suficientemente bem para ir para uma grammar school.1 Assim, fui enviado para uma escola técnica, onde supostamente aprenderia as competências necessárias para me tornar um comerciante ou um técnico. Contudo, depois de apenas oito anos em Gillingham, voltámos a mudar-nos, desta vez para Blackpool, no nordeste; e, depois de vários contratempos, mandaram-me para a moderna escola secundária local — um passo atrás relativamente à escola técnica do sul.
Blackpool é uma cidade rude, dura e aberrante do litoral, ventosa e húmida, frequentada principalmente por operários a fazer férias baratas. As ruas estão cheias de bares, casas de fish-and-chips2 e casas de diversão com máquinas de jogos. Cultural é que não é. No entanto, havia uma sensação de privilégio entre os habitantes, até mesmo um certo tipo de snobismo, uma vez que havia pessoas que de facto pagavam bom dinheiro para visitar o local. As principais actividades dos rapazes naquela cidade eram beber e brigar, e tentativas desajeitadas de tirar partido das miúdas debaixo do píer. A escola que frequentei era tosca e filistina, dedicando-se sobretudo a tentar controlar os estudantes, de formas por vezes hilariantes (a atarracada directora da escola dava, efectivamente, pelo nome de Menina Bloomer3 — “Keks” para os rapazes, do dialecto local para “cuecas”). Numa ocasião o professor de educação física castigou os estudantes todos do mesmo ano — perto de noventa — porque alguém tinha atirado batatas fritas para cima da parede de cacifos da piscina e ninguém revelava a identidade do culpado. Ao todo, fui castigado três vezes, das outras duas igualmente por nenhuma razão especial (o que muito me magoou). Não era uma escola com base na qual se pudesse esperar que alguém viesse a ser alguma coisa; a maioria dos rapazes que por lá conheci já tinham um emprego mal pago, aos dezasseis anos. Apesar de tudo, sempre me dei muito bem com a matemática e com o inglês (mas, caramba, era mesmo mau a geografia). Fazia questão de acabar os trabalhos de casa o mais depressa possível e de passar a maior parte do meu tempo a fazer desporto, a tocar bateria numa banda de rock e a aperfeiçoar as minhas técnicas de pinball.
Apesar de tudo, portei-me suficientemente bem nos exames de nível O,4 feitos aos dezasseis anos, de modo a permitir-me passar para uma grammar school, para estudar para os exames de nível A. Nesta, fui espectacularmente suplantado pelos meus colegas, que me pareciam verdadeiros génios, relativamente falando. Alguns destes rapazes até liam livros por prazer! Eu era um leitor incansável de livros para crianças quando era novo, especialmente das histórias do Dr. Doolittle, mas desde a adolescência que não lia praticamente coisa alguma — só a ocasional história de terror ou de ficção científica. Ler tinha perdido a magia para mim por volta dos catorze anos, quando, por coincidência, as hormonas entraram em acção. Aquilo em que era bom e de que gostava era o desporto, especialmente a ginástica e o salto à vara (relativamente ao qual detinha o recorde da escola). Fazia também parte do grupo de mods,5 que prestavam particular atenção aos seus penteados e roupas (cabelo penteado para trás, fatos elegantes, sapatos de dança). Nesta altura, nem sequer contemplava a possibilidade de ir para universidade, e a ideia nunca fora mencionada na minha casa; não era algo que um McGinn tivesse alguma vez feito. Os meus professores esperavam que me tornasse um professor de educação física, devido aos meus talentos desportivos e à minha habilidade moderada com a aprendizagem livresca. Pessoalmente, estava mais virado para me tornar um acrobata de circo ou um percussionista profissional. Mas um dia na escola perguntaram-nos se gostaríamos de tentar ir para universidade, e eu pensei que talvez valesse a pena tentar. E, em qualquer caso, já se faziam sentir grandes mudanças no meu desenvolvimento mental. A minha vida começou a mudar-se para a minha cabeça, pelo menos em parte. Até à altura, a minha maior preocupação tinha sido desenvolver a coordenação física, daí os desportos e a bateria, mas agora também o meu espírito começava a ansiar por actividade. Era como se se tivesse ligado um interruptor: os circuitos começaram a zumbir.
Tinha ficado sob a influência de um professor, o Senhor Marsh, que me ensinou teologia de nível A. Já tinha ficado muito impressionado com as aventuras intelectuais descritas por James Joyce em O Retrato do Artista Quando Jovem, que fazia parte das leituras recomendadas para a disciplina de Inglês do último ano (Economia era o meu terceiro exame de nível A). Mas o senhor Marsh acendeu em mim o interesse por estudar e pensar, sobretudo sobre religião e teologia. Era um professor rigoroso, mas amável — cristão devoto, com um interesse apaixonado pelos seus estudantes. Quando olho retrospectivamente, vejo-o como um homem apaixonado por aprender e pela erudição (a sua palavra favorita era “erudito”), mas que não tinha a competência necessária para chegar a professor universitário. Falava dos seus dias como estudante universitário como se tivesse sido um verdadeiro paraíso, os seus olhos flamejantes com o entusiasmo da recordação. Ensinou-nos a Bíblia com grande intensidade, mas não como um prosélito — nutria um fascínio genuíno por questões teológicas. De vez em quando, mencionava alguns filósofos, à medida que ia discutindo alguns temas contenciosos — como, por exemplo, a plausibilidade de uma virgem ter dado à luz — e foi da sua boca que pela primeira vez ouvi o nome de Descartes.
Descartes foi descrito como alguém que está sentado junto do seu fogão, num frio dia de Inverno, a duvidar de tudo, até mesmo do mundo exterior e da existência de mentes além da sua. Tudo o que sobrou foi o seu próprio eu como ser pensante. A finalidade era mostrar a futilidade da dúvida e a importância da fé: se duvidássemos dos acontecimentos da Bíblia, acabaríamos por duvidar de tudo. No final, o senhor Marsh defendeu triunfantemente que Descartes só poderia acreditar na sua própria existência como mente solitária — era aqui que a dúvida nos levaria! Isto era muito estranho — dramaticamente oposto ao senso comum — e, no entanto, parecia-me haver uma certa lógica nas dúvidas de Descartes, independentemente das suas implicações religiosas (na verdade, Deus tem uma importância central no sistema de Descartes, mas o senhor Marsh nunca o mencionou).
Em resultado destas intromissões filosóficas, comecei a dar uma vista de olhos em alguns livros elementares de filosofia (se é que há tal coisa). Naturalmente, estava muito preocupado com a questão de saber se se poderia estabelecer racionalmente a existência de Deus, especialmente porque nessa altura me considerava um crente cristão: não que tenha sido criado desse modo, mas tinha sido levado a tais crenças ao estudar a Bíblia, sob o entusiasmo do senhor Marsh. E quando se passa a acreditar em Deus, com tudo o que isso implica, fica-se com curiosidade sobre os fundamentos intelectuais da crença. Será apenas uma questão de fé cega ou poderá a existência de Deus ser demonstrada? E ao fazer estas perguntas, fui rapidamente levado ao problema geral de saber o que é afinal de contas uma justificação, assim como a perguntas sobre o conhecimento, a certeza, o livre-arbítrio e a origem do Universo. Deus pode ou não ser um filósofo, mas é certamente responsável por muita filosofia.
E foi neste momento que ocorreu a minha primeira epifania filosófica. Estava sentado no meu quarto, frio e sem aquecimento, em Blackpool, com a minha bateria no canto, a ler sossegadamente um livro sobre argumentos a favor da existência de Deus (já não me lembro que livro era). Deparei-me com algo chamado “argumento ontológico” inventado por Santo Anselmo da Cantuária, na Idade Média. Achei o argumento difícil de seguir, mas completamente arrebatador (muita da filosofia é assim). Li e reli as palavras vezes sem conta, tentando captar o seu significado, à medida que os meus pés iam arrefecendo. A sensação que tive foi que o meu espírito ficou dominado pelo raciocínio abstracto, sendo levado à força pelo poder da lógica. O argumento ontológico tem a seguinte estrutura: Deus é, por definição, o ser mais perfeito que podemos conceber. Reúne todas as perfeições numa única entidade — absolutamente bom, perfeitamente sábio, infinitamente poderoso. Isto é apenas aquilo que queremos dizer com a palavra “Deus” e, aparentemente, podemos dizê-lo quer Deus exista, quer não. Como Anselmo colocou a coisa, Deus é definido como aquele ser “maior que o qual nenhum outro pode ser concebido”. Isto é, se Deus existe então, por definição, é a soma de todas as perfeições — do mesmo modo que se um unicórnio existisse, teria um único corno. A questão colocada por quem duvida da existência de Deus é se há alguma coisa na realidade que satisfaça esta descrição. Sim, Deus seria o ser mais perfeito se existisse: mas será que existe? Afinal de contas, posso definir a palavra “Daus” deste modo: “aquela pessoa que consegue saltar mais de dez metros de altura, descalça e com a maior das facilidades”; mas isto não nos diz se Daus existe mesmo — e, na verdade, Daus não existe. Pode-se pensar que a questão de saber se Deus existe é análoga a esta; sabemos qual é a definição da palavra “Deus”, mas o que não sabemos é se existe de facto alguma coisa que satisfaça essa definição. Um agnóstico que duvida da existência de Deus, certamente que sabe perfeitamente bem qual é o significado da palavra “Deus” — assim como todos nós sabemos o significado de “unicórnio”. Assim, pode-se pelo menos conceder que o ateísmo é uma posição logicamente consistente; não é o mesmo que dizer que os triângulos não têm três lados, algo que é falso por definição. A questão de saber se Deus existe é uma questão de facto, e não uma questão de definição.
Mas, argumenta Anselmo, isto é falso: o ateísmo não é, afinal, uma posição logicamente consistente. Porquê? Porque nos estamos a esquecer que Deus é definido como o ser mais perfeito que possamos conceber a todos os níveis — e não é melhor existir do que não existir? Se Deus não existir, carece do atributo de existência; mas então não será menos perfeito do que um ser semelhante com esse atributo? Imagine-se dois seres semelhantes nas suas perfeições, excepto no facto de um existir e do outro não. Não terá o ser que existe mais perfeições do que o outro, uma vez que pelo menos existe? Não existir é uma espécie de falta, uma carência, mas Deus é definido como o ser a quem nada falta, que não carece de qualquer qualidade positiva, que tem tudo como deve ser, que tem tudo. Tal ser tem de existir, senão não tem todas as qualidades positivas. Assim, a existência de Deus segue-se de facto da definição de Deus, ao contrário do meu exemplo de Daus, o saltador que não existe. Quando se compreende o significado da palavra “Deus” fica-se a saber que Deus existe, uma vez que aquilo que queremos dizer essa palavra é simplesmente o ser mais perfeito, e a existência é uma das perfeições. A existência é um atributo que acresce ou aumenta o grau de perfeição de uma entidade e, portanto, o ser mais perfeito concebível tem de ter esse atributo.
Imagine-se a entidade mais poderosa concebível: não terá tal entidade de existir, pela simples razão que não existir é uma redução drástica do poder de uma entidade? Na sua lapidar forma clássica, na qual pela primeira vez o conheci, o argumento é o seguinte: Deus é definido como aquele ser maior que o qual nenhum ser pode ser concebido; mas a existência é um atributo que contribui para a grandeza; logo, Deus existe. Assim, Deus existe em função do significado das palavras, como uma espécie de necessidade conceptual; portanto, é logicamente incoerente duvidar da sua existência, como se isso pudesse ser uma questão diferente da questão de saber o que queremos dizer com a palavra “Deus”. A existência de Deus é logicamente necessária, uma questão puramente de definição, e não uma questão sobre factos contingentes. O caso de Deus é assim muito diferente do caso do unicórnio, cuja definição não implica a sua existência.
Ora, isto é um raciocínio surpreendente. Pretende-se estabelecer por meio de um argumento logicamente rigoroso que não se pode negar de maneira razoável a existência de Deus. Não é necessário apelar para saltos de fé, nem para especulações acerca de como o mundo começou, nem para a ocorrência de milagres. Para alguém como eu, aos dezoito anos, que lutava com a questão de saber se Deus existe, isto era absolutamente inesperado. A existência de Deus era, afinal, tão sólida como o facto de quatro ser o número inteiro a seguir a três. Mas, à medida que fui estudando o argumento, relendo-o, tentando compreender o seu funcionamento (com os meus pés cada vez mais frios), senti indistintamente que o raciocínio parecia, de algum modo, mais inteligente do que poderia ser, tornando demasiado fácil a questão de saber se Deus existe, e tornando a fé irrelevante. Assim, ao mesmo tempo que estava impressionado com o argumento, e durante algum tempo obcecado com ele, fiquei com sentimentos ambivalentes. Muita da filosofia é assim: cativante, momentosa, mas também preocupante, e irritantemente perturbadora.
Acho que aquilo que verdadeiramente me abalou naquele dia foi a consciência do poder da razão — de como o pensamento lógico pode produzir resultados enormes e chocantes. Não se trata de dizer que continuo a acreditar na solidez do argumento ontológico, apesar de não achar que haja algo de obviamente errado com ele. Mas é um argumento fascinante, simples e, contudo, intrincado; e agora não estou de modo algum surpreendido com o impacto que teve no meu eu dos dezoito anos. Naquele dia, soube que queria aprender mais destas coisas da filosofia. Independentemente de tudo o resto, o argumento era simplesmente super inteligente. Imagine-se como o Anselmo se deve ter sentido no dia em que inventou o argumento ontológico; deve ter andado pela Cantuária estonteado de emoção e de temor durante semanas. (Não havia, infelizmente, um Santo Anselmo de Blackpool, cujo santuário eu pudesse visitar.) De facto, o argumento foi amplamente aceite pelos mais importantes filósofos que o sucederam, e, assim, é considerado um dos argumentos filosóficos mais influentes da história. Aquilo que também me impressionou, naquele dia de Inverno em Blackpool, foi o facto de o meu espírito poder entrar em contacto com os espíritos dos grandes pensadores do passado, e de poder elevar-me acima das banalidades monótonas da cidade litoral na qual por acaso vivia. Esta qualidade da filosofia ficou sempre comigo, e sinto-a ainda hoje, à medida que escrevo estas palavras (também numa cidade do litoral particularmente pouco fascinante: Mastic Beach, Long Island). A filosofia pode erguer-nos e levar-nos para muito longe.
Por volta desta altura, comecei a ler livros de C. E. M. Joad, a conselho do senhor Marsh. Joad escreveu livros de filosofia acessíveis para o grande público, e costumava falar regularmente na rádio da BBC, nos anos cinquenta do século XX. Não era um filósofo original, retirando a maioria das suas ideias de Bertrand Russell — de quem falaremos mais adiante. (Uma vez pediram a Russell para escrever um prefácio laudatório a um livro de Joad, a que respondeu, com mau humor: “Seria falta de modéstia fazê-lo”.) A paixão do Joad era a percepção, e era um entusiasta do “argumento da ilusão”. A questão em causa é saber se realmente vemos objectos físicos lá fora, no espaço, ou apenas itens subjectivos nos nossos espíritos. Normalmente, supomos que estamos o tempo todo a ver objectos físicos, e que também lhes tocamos: vemos comboios e aviões e barcos, e tocamos em maçanetas e em chávenas e em corpos. O que poderia ser mais óbvio e de senso comum? Contudo, durante séculos, os filósofos estavam convencidos que isto era apenas um erro comum, uma mera forma de falar que ocultava a verdade acerca da percepção. Aquilo que realmente percepcionamos são elementos dos nossos próprios espíritos — os quais têm sido designados de várias maneiras: dados dos sentidos, impressões, experiências, representações. A percepção não é uma faculdade que revela as formas do mundo físico exterior aos nossos espíritos, que se encontram confinados a uma colecção totalmente interior de itens mentais. A única realidade que podemos alguma vez literalmente percepcionar é uma realidade virtual, um mundo-sombra de sensações efémeras. Daí os filósofos terem designado a ideia de senso comum acerca da percepção de “realismo ingénuo”: tal como o Sol realmente não se levanta, nem a Terra é plana, também não percepcionamos realmente os objectos físicos — isto são puras ilusões ingénuas. Aquilo que percepcionamos está dentro de nós, e não lá fora, como ingenuamente pensamos.
Como haveria alguém de rejeitar deste modo o senso comum? Eis o argumento canónico, exposto por Joad com grande força e clareza, seguindo uma longa tradição. Vejamos o caso das ilusões e das alucinações, tal como ver uma vara direita parecer torta dentro de água, ou imaginar ratazanas cor-de-rosa quando se está sob a influência do LSD. A vara parece arqueada, como uma vara arqueada o pareceria, e as ratazanas parecem cor-de-rosa, como as ratazanas cor-de-rosa reais pareceriam, se existissem. As ilusões são, precisamente, uma imitação da realidade, e é por isso que nos podem iludir. Portanto, não há qualquer diferença subjectiva entre a percepção ilusória e a percepção real ou “verídica”: o mundo parece-nos de uma certa forma, e a forma como nos parece pode ser ilusória ou verídica, dependendo de o mundo ser ou não do modo como nos parece. Do ponto de vista subjectivo, não há qualquer diferença entre o punhal da alucinação de Macbeth e um verdadeiro punhal — e é por isso que as ilusões podem ser tão assustadoras como as coisas reais. Mas no caso da alucinação não vemos qualquer objecto físico real — não existe qualquer objecto no mundo real que responda à nossa percepção. Contudo, certamente que percepcionamos algo, a nossa mente não está vazia — as coisas de facto parece que são de certa forma para nós. Portanto, nesse caso, devemos estar a ver algo distinto de um objecto físico, e este algo tem de ser de natureza mental. Chamemos a esse algo “dados dos sentidos”: portanto, podemos dizer que vemos dados dos sentidos de varas arqueadas, de ratazanas cor-de-rosa, de punhais, mesmo que não estejamos a ver qualquer um desses objectos físicos. Percepcionamos a aparência subjectiva das coisas, e não as coisas em si, uma vez que as coisas não podem ser percepcionadas. Aquilo de que temos consciência no caso das ilusões e das alucinações não é dos objectos físicos, mas dos dados dos sentidos, que são internos e não físicos. Mas, sendo assim, como referimos, não há qualquer diferença subjectiva entre o caso ilusório e o caso subjectivo: as coisas têm o mesmo aspecto em ambos os casos; temos a mesma experiência; não conseguimos distinguir uma da outra. Não significará isto que também temos de percepcionar os dados dos sentidos no caso verídico habitual? Quando “vemos” um punhal verdadeiro vemos os dados dos sentidos de um punhal; o que se passa é que, neste caso, existe de facto um punhal que corresponde aos nossos dados dos sentidos com aspecto de punhal, dados dos sentidos esses que percepcionamos directamente. Assim, aquilo que imediatamente percepcionamos é sempre os dados dos sentidos, e não a coisa real. Logo, não vemos directamente objectos físicos, mas apenas os seus representantes, na forma mental de dados dos sentidos. É como tentar ter um encontro com o chefe de estado mas só conseguir chegar aos seus emissários. A nossa consciência directa pára ao nível dos dados dos sentidos, e não se alarga, de modo a apoderar-se dos objectos físicos reais. Talvez possamos dizer que percepcionamos os objectos físicos indirectamente, como quando só vemos os reflexos de uma coisa qualquer num espelho, ou as pegadas de alguém na neve. Mas não são os objectos que se apresentam imediatamente à mente quando temos uma experiência visual. Aquilo que se apresenta imediatamente à nossa mente é a nossa mente em si — os seus conteúdos sensoriais presentes.
Isto é um resultado alarmante. Restringe a nossa consciência ao nosso próprio eu subjectivo, separando-nos do mundo dos objectos físicos com os quais ingenuamente pensávamos estar em contacto. A consciência coloca-nos em contacto apenas com os seus próprios conteúdos: um jogo de imagens numa televisão mental. Quando me deparei pela primeira vez com este argumento, fiquei a olhar fixamente para a mobília à minha volta, tentando forçar a minha mente a tomar consciência da mobília, para penetrar para lá do véu dos dados dos sentidos; mas tinha a sensação sufocante de que estava apenas a contemplar mais energicamente aquilo que estava dentro de mim — o meu próprio mundo subjectivo, e não o mundo público comum em que havia acreditado até então. Existia apenas, na melhor das hipóteses, uma correspondência entre o mundo subjectivo de que tinha experiência e o mundo físico para lá deste, mas não havia forma de poder sair do meu mundo subjectivo para verificar se a correspondência se dava de facto — uma vez que não tinha acesso directo aos objectos físicos que supostamente correspondem aos meus dados dos sentidos. De certo modo, foi como se descobrisse que era cego: não conseguia ver objectos físicos! Nem podia tocar-lhes, prová-los ou cheirá-los. O meu mundo tinha-se reduzido, restando apenas o meu eu consciente. Eu era, suponho, tão egocêntrico como muitos outros adolescentes, mas isto era demais. Tinha perdido o mundo — ou melhor, nunca o tinha tido desde o início.
E a partir daí as coisas só pioraram. Se nunca percepcionamos objectos físicos, como sabemos que existem mesmo? Certamente que não o podemos saber por meio da percepção. Normalmente, pensamos que podemos saber o que está numa sala indo lá ver. Mas não é assim: tudo o que determinamos desta forma é quais são os dados dos sentidos temos depois de termos os dados dos sentidos de entrar na sala; os objectos permanecem exasperantemente fora do nosso alcance. Daqui até ao cepticismo cartesiano industrial total é só um pequeno passo: tudo aquilo que sabemos que existe são os nossos próprios estados subjectivos, e não os objectos que estão supostamente lá fora, no mundo físico exterior. De facto, que direito temos de acreditar que existe realmente um mundo físico exterior? Não se poderá dar o caso dos nossos dados dos sentidos não corresponderem a coisa alguma externa? Não poderá tudo ser um sonho? Descartes pediu-nos para imaginar um génio maligno que produziu os dados dos sentidos, assegurando-se de que nada lhes correspondesse, de modo a que todas as nossas experiência sensoriais não passassem de uma longa alucinação. Como podemos excluir esta possibilidade? Não o podemos fazer apelando simplesmente para os nossos dados dos sentidos, pois estes seriam os mesmos quer tivessem sido causados por objectos físicos, quer tivessem sido causados pelo génio maligno. Como podemos sequer saber que temos corpo? Como podemos de facto saber que não começámos a existir há cinco segundos, equipados com uma grande diversidade de pseudomemórias? O conhecimento parece reduzir-se aos estados internos do nosso eu momentâneo.
A versão actualizada do génio maligno de Descartes é o cenário do “cérebro numa cuba”. Neste caso, supomos que os nossos cérebros foram removidos das nossas cabeças por cientistas alienígenas com uma avançadíssima tecnologia sobre cérebros. Os cientistas colocam os nossos cérebros em cubas nutritivas, em pequenos e bonitos cubículos, cada um deles assinalado com o nosso nome. Depois, ligam os cérebros a uma máquina que envia impulsos eléctricos aos nossos nervos sensoriais, os quais resultam em dados dos sentidos: percepcionamos coisas familiares, mas sempre através destas simulações eléctricas. Assim, sentimos que estamos num bar em Nova Iorque a falar com os nossos amigos, quando de facto estamos enfiados numa cuba algures em Cleveland, a alucinar tudo isto. O que os cientistas estão a fazer é a produzir uma mera simulação do mundo físico normal — um mundo virtual de puros dados dos sentidos. Eles também supervisionam astutamente as nossas decisões para mexer os nossos corpos (dos quais, habilidosamente, se livraram) enviando-nos impulsos sensoriais que correspondem àquilo que decidimos fazer. Se eu decidir ir ao frigorífico buscar uma cerveja, eles dão-me a sensação de que movimento os meus membros e de a cozinha começar a aparecer e de uma porta do frigorífico a abrir, de modo a que não posso determinar qual é a minha verdadeira situação. Percepciono a garrafa na minha mão e depois a cerveja a correr pela minha garganta abaixo, mas de facto não existe qualquer cerveja, ou garganta ou mão — apenas um cérebro ligado a uma data de fios e a um computador gigante a sussurrar ao canto da sala. Ora, a pergunta horrível é: como sei que não sou, neste momento, um cérebro numa cuba? Se o fosse, as coisas não me pareceriam minimamente diferentes, pelo que o modo como as coisas parecem não pode excluir a hipótese da cuba. Posso muito bem ser, neste preciso momento, um cérebro imóvel, a que é dada a ilusão de que é uma pessoa que anda, fala e está em contacto com objectos físicos reais. Provavelmente, nunca conheci um único objecto físico na minha vida, incluindo os objectos físicos a que chamamos “pessoas”. Talvez o solipsismo seja verdadeiro, e eu estou completamente só com os meus dados dos sentidos. Talvez o Universo todo seja uma parede tremeluzente de ilusão, sendo a minha consciência a única realidade. Quando vou a algum lado, também vai tudo o resto, uma vez que não existe tudo o resto.
Fiquei satisfeito ao ver recentemente que este tormento tinha sido convertido como base de um argumento para um filme de ficção científica: The Matrix. Neste filme, seres humanos imobilizados estão empilhados em quilómetros de altura dentro de cubículos e ligados a um computador que cria nos seus cérebros uma simulação do mundo real. As máquinas tinham-nos feito isto de modo a retirar nutrientes dos corpos dos seres humanos; tornámo-nos comida industrial para computadores. Aceitamos esta forma de parasitismo, porque não sabemos que é isto que se passa, uma vez que tudo nos parece bastante normal. Apenas um pequeno grupo de rebeldes conhecem a verdadeira situação, e estão determinados a libertar a humanidade. A premissa básica de todo o filme é que se esta fosse a nossa situação não o saberíamos: a Matrix ter-nos-ia iludido. Aposto que os criadores do filme tiveram uma ou outra cadeira de filosofia na faculdade e que ficaram desde aí perturbados com as possibilidades colocadas pelo cepticismo cartesiano. E todo o desenvolvimento contemporâneo a respeito das máquinas de realidade virtual depende da possibilidade de se simular o mundo real, eliminando assim a conexão entre a aparência da realidade. Afinal, temos as experiências que temos devido aos sinais que atingem os nossos nervos sensoriais, que activam partes do nosso cérebro; se conseguirmos produzir esses sinais sem a ajuda de objectos físicos reais, então poderemos simular a percepção de objectos, sem nos preocuparmos minimamente com a realidade. No que diz respeito à percepção, a realidade pode ser dispensada, pelo menos em princípio.
Mais uma vez, aquilo que mais me surpreendeu aos dezoito anos, quanto a estes argumentos, foi o poder da razão para deitar por terra suposições que eu tomava como garantidas. Não se tratava de aceitar inteiramente os argumentos, mas são sem dúvida suficientemente lógicos — e abalam uma parte central da nossa visão de senso comum acerca do nosso lugar no mundo. As nossas crenças de senso comum não são tão racionalmente inquestionáveis como tão ingenuamente supúnhamos antes de questionarmos os seus fundamentos. O argumento da ilusão é como uma onda gigante de raciocínio que nos abandona numa praia estranha e desconhecida, deixando-nos exaltados mas perturbados. E repare-se como este argumento se combina com o argumento ontológico: parece que a razão consegue provar a existência de Deus, mas também conduz ao resultado de que não podemos saber que existe o mundo do dia-a-dia de mesas e cadeiras. Pensávamos que a existência de Deus era racionalmente questionável mas que a existência do mundo exterior era sólida como uma pedra, mas a razão diz-nos que podemos estar mais seguros da existência de Deus do que da existência do nosso vizinho. As divindades são mais certas do que as mesas e as cadeiras! Posso saber com segurança que existo e que Deus existe, mas tudo o resto é questionável. Quem haveria de dizer? O que me pôs no caminho para me tornar filósofo foi querer saber se isto era mesmo assim; os argumentos pareciam convincentes, mas será que eram tão convincentes quanto pareciam? Queria compreender melhor os argumentos, de modo a poder decidir em que acreditar. Aquilo que estou a realçar agora é o impacto que esses argumentos tiveram no meu impressionável espírito de adolescente — como me levaram a pensar. Comecei a aperceber-me de que mesmo a crença mais comum poderia estar errada, que poderia ser mero preconceito — que tudo tinha de estar aberto ao escrutínio racional. Se isto era verdadeiro no que diz respeito à crença no mundo exterior, não o seria ainda mais no caso das crenças sociais e políticas que eram tomadas como evangelhos?
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Colin McGinn
Como Se Faz Um Filósofo (Lisboa: Bizâncio, 2007)
Notas
Escola para preparar os estudantes para a universidade. N. da T.
Comida tradicional inglesa servida de modo a poder ser comida de pé e até a caminhar: filetes fritos de peixe com batatas fritas. N. da T.
Bloomer significa “disparate”. N. da T.
No sistema britânico, os exames de nível O (da palavra inglesa ordinary, que significa “comum”) eram feitos entre os 15 e os 16 anos de idade como exames de conclusão da escolaridade mínima obrigatória. Depois de cumprida a escolaridade mínima obrigatória e de passar nestes exames, os estudantes podem estudar mais dois anos para se prepararem para os exames de nível A (da palavra inglesa advanced, que significa “avançado”) que são exames de admissão à universidade. N. da T.
Os mods eram grupos de jovens de meados dos anos sessenta do século XX que se opunham aos rockers e, mais tarde, nos anos setenta, aos skinheads. O nome mod deriva de “modernista”. N. da T.
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Texto reproduzido do site: criticanarede com/fezfilosofa