"De todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida". (Bertolt Brecht)


quinta-feira, 18 de abril de 2024

Da filosofia, da dica e da procura da verdadeira satisfação

Artigo compartilhado do site INFONET, de 31 de janeiro de 2024

Da filosofia, da dica e da procura da verdadeira satisfação

Do blog Cláudio Nunes/Infonet

“Não conhecendo os meios de encontrar uma satisfação para o seu espírito, o homem da civilização da máquina pensa encontrar refúgio na distração. Organiza-se, mesmo, em nossa época, a indústria da distração. O homem procura distrair-se, porque não tem consciência de que o que sua natureza exige é satisfação, não distração. E confunde distração com satisfação! Pensa poder satisfazer-se com a distração. E distrai-se da procura da verdadeira satisfação.” Eduardo Prado de Mendonça.

O leitor que acompanha este espaço desde 2006 sabe que este jornalista é um eterno aprendiz da filosofia e da história. E, recentemente, ao participar de um evento, teve o prazer de conhecer o advogado, especialista em direito eleitoral, Fabiano Feitosa. E, no bate papo teve a oportunidade de saber que o advogado também é um entusiasta do aprendizado filosófico.

Fabiano sugeriu um livro de um professor e filósofo brasileiro, Eduardo Prado de Mendonça, escrito no início da década de 70, “O mundo precisa de filosofia”. Eduardo faleceu prematuramente em 1978, aos 54 anos, mas deixou várias obras. No caso deste livro especifico ele destaca como a filosofia está no nosso dia a dia citando e refletindo sobre o que escreveram diversos filósofos. Assim como Fabiano Feitosa, este jornalista conseguiu um exemplar usado, neste caso num sebo da cidade de Porto Alegre (RS).

De maneira mais objetiva e clara, o blog vai tentar aos poucos refletir e analisar os capítulos – alguns são fantásticos como “ Viver, ou ter coragem de Morrer” – de tudo que é abordado neste livro que é uma verdadeira síntese de alguns princípios filosóficos.

Texto e imagem reproduzidos do site: infonet com br/blogs/claudio-nunes

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Artigo compartilhado do site INFONET, de 9 de fevereiro de 2024

Reflexão para o Carnaval: viver, ou ter coragem de morrer; a vida

Do blog Cláudio Nunes/Infonet.

Dando continuidade a leitura do livro “O mundo precisa de filosofia” do filósofo brasileiro já falecido Eduardo Prado de Mendonça, citado no artigo do último 31 de janeiro neste espaço – Da filosofia, da dica e da procura da verdadeira satisfação – e fruto de uma dica do entusiasta da filosofia, o advogado especialista em direito eleitoral, Fabiano Feitosa, o blog aborda hoje um dos capítulos que mais gostou: Viver, ou ter coragem de morrer.

Ao citar Sócrates, o autor aborda a existência humana abordando o problema da vida que imediatamente leva o problema da morte. Apenas dois parágrafos para reflexão:

“Pensar a morte é tão difícil como pensar o próprio nascimento. Pensamos em nós, vivendo. Pensamos em nós tendo consciência das coisas. Não pensamos em nós antes de nascermos, e nem pensamos em nós nascendo. Da mesma forma, ninguém pensa a própria morte. Pensamos a morte dos outros, pensamos isto em termos abstratos.”

“Nascemos, pois, a cada momento, no ministério da subsistência. Mas morremos também aos poucos, na medida em que nos sentimos tolhidos na existência, e obrigados a escolher de tal forma que na proporção em preferimos alguma coisa deixamos de lado outras, e a fixação numa é o desligar-se de outras. O processo de seleção e escolha, em que vivemos nos faz passar pela experiência viva de nascer e morrer em cada momento de decisão.”

Ou seja, é como escreveu o filósofo francês, Henri Bergson citado pelo autor: “a vida não se contenta com o bom, ela pede o melhor.” É preciso que o ser humano tenha consciência que a vida é um mistério com começo e fim, portanto viver é um processo constante de escolha.

Texto reproduzido do site: infonet com br/blogs/claudio-nunes

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Artigo compartilhado do site INFONET, de 12 de abril de 2024 

Ser humano vive esquecendo que a morte é algo inescapável. Parte I

Do blog Cláudio Nunes/Infonet.

“O mais terrível dos males, a morte, não é nada para nós, pois enquanto nós existimos, a morte não está presente, e quando a morte está presente, então nós não existimos”. Epicuro.

Epicuro, um dos maiores filósofos gregos, deixou muitas reflexões filosóficas, principalmente sobre a morte, já que não acreditava na imortalidade. A vida, dizia ele, era uma tragédia. “Não somos filhos de Deus, vivemos e morremos por acaso e depois da morte não há outra vida”, escreveu.

Epicuro viveu nos anos antes de Cristo e, passados tantos séculos, boa parte do ser humano, sobretudo aquela gananciosa e sedenta de poder, ainda não aceita a morte, apesar de ser a única certeza real na vida.

Como bem escreveu o filósofo brasileiro já falecido, Eduardo Prado de Mendonça, “nós estamos por demais viciados em critérios, através dos quais realizamos os nossos juízos de valor.”

E boa parte tem a noção do útil como um critério por excelência da vida humana e ponto final.

Os “cultos” do ter, querer e poder, são as principais bases da vida da maioria dos seres humanos. E muitos, quando dão conta da presença da morte é tarde demais para exercer a plenitude de viver com os familiares e, sobretudo, da caridade para o próximo.

Dos devaneios reflexivos do blog Quem leu o artigo acima pode esperar mais alguns no decorrer das próximas semanas. Aliás, esta “série” foi iniciada em 31 de janeiro com o artigo “Da filosofia, da dica e da procura da verdadeira satisfação” e continuada com uma reflexão para o feriadão de Carnaval no último dia 9 de fevereiro “viver, ou ter coragem de morrer; a vida”.

Texto e imagem reproduzidos do site: infonet com br/blogs/claudio-nunes

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Artigo compartilhado do site INFONET, de 18 de abril de 2024

Ser humano vive esquecendo que a morte é algo inescapável. Parte II

Do blog Cláudio Nunes/Infonet.

O blog continua hoje a reflexão sobre a morte e a irracionalidade da maioria da humanidade que pensa que é imortal esquecendo que a vida é efêmera e dela não se leva bens materiais, mas sim o que foi forjado na relação com o próximo sem egoísmo e orgulho, mas com desprendimento, fraternidade e solidariedade.

No mundo onde quem dita as normas para uma sociedade consumista é a ambição, a hipocrisia, a vaidade, a arrogância e o individualismo é cada vez mais difícil encontrar pessoas com sentimentos como humildade e caridade para o próximo.

Eduardo Prado de Mendonça, filósofo brasileiro, em seu livro “O Mundo Precisa de Filosofia”, lembrou que o homem moderno – imagine, num livro lançado em 1978 – de tanto se servir da máquina, passou a refletir o humano pelo mecânico. “Vivemos presos ao imediato. À Medida em que o homem mais desconhece a razão de ser de sua vida, tanto mais ele se agarra às pequeninas coisas do cotidiano. Tanto menos ele conhece o sentido de sua vida, e mais é tomado de uma angústia e paixão, que deixam a impressão de uma pressa de chegar sem que ele saiba aonde. E quanto menos ele se conhece a si mesmo tanto mais se empenha em transformar o mundo. Revolver não é revolucionar, envolver não é evoluir, nem processamento é necessariamente progredir”, escreveu Eduardo Prado.

“Na perspectiva do mais, esqueceu do melhor”. E finaliza lembrando do “Fausto” de Goethe, movido pela ambição de possuir todos os bens do mundo e entregou a sua alma ao diabo.

E o que acontece com a maioria do ser humano hoje: vendeu literalmente sua alma ao diabo a partir da ambição e da vaidade. São dominados literalmente pelo diabo. E quando estão à beira da morte lembram que esqueceram de viver mais praticando o bem, a fraternidade e da humildade necessária para aos olhos de Deus.

Dos devaneios reflexivos do blog O artigo acima é a continuidade do texto da do dia 12 de Abril, com o título: “Ser humano vive esquecendo que a morte é algo inescapável. Parte I”, que faz parte de uma “série” iniciada em 31 de janeiro com o artigo “Da filosofia, da dica e da procura da verdadeira satisfação” e continuada com uma reflexão para o feriadão de Carnaval no último dia 9 de fevereiro “viver, ou ter coragem de morrer; a vida”.

Texto reproduzido do site: infonet com br/blogs/claudio-nunes

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Artigo compartilhado do site INFONET, de  23 de abril de 2024

Ser humano vive esquecendo que a morte é algo inescapável. Parte III

Do Blog Cláudio Nunes/Infonet

E continuando os devaneios do blog com reflexões sobre filosofia, vida e morte. Hoje é preciso analisar a vida atual onde a maioria vive muitas vezes uma realidade virtual que muitas vezes não reflete o verdadeiro “viver”.  A aparência e a necessidade de aparecer estão acima da importância de valorizar o próximo no sentido mais amplo da palavra.

Alguns exercitam o “pecado da ignorância”, como escreveu São Tomás de Aquino no sentido da culpa, implicando na omissão indesculpável e desinteresse por valores.

É como escreveu o filósofo brasileiro Eduardo Prado de Mendonça “na vida humana, ou vivemos de acordo com o que pensamos, ou acabamos pensando de acordo com o nosso modo de viver”. Uma frase atualíssima para os dias onde a realidade virtual está acima da realidade concreta.

Boa parte da humanidade hoje é negligente com a omissão na falta de ações, tanto no campo global, como na sua comunidade. Este equivoco é provocado, sobretudo, pelo mundo virtual das aparências, que deixa a realidade fora do contexto principal.

Confirma a tese de Eduardo Prado que o modo de viver se sobrepõe muitas vezes ao que o cidadão pensa. O despojamento é algo para poucos não no sentido apenas material, mas no sentido de se livrar da omissão e da negligência para encarnar a verdade e a humildade no relacionamento com o próximo.

Reflexões O artigo acima é a continuidade de uma série de textos publicado sobre o tema iniciada em 31 de janeiro com o artigo “Da filosofia, da dica e da procura da verdadeira satisfação” e continuada com uma reflexão para o feriadão de Carnaval no último dia 9 de fevereiro “viver, ou ter coragem de morrer; a vida”. Depois “Ser humano vive esquecendo que a morte é algo inescapável. Parte I”, Parte II e este de hoje.

Texto reproduzido do site: infonet com br/blogs/claudio-nunes

sábado, 16 de setembro de 2023

'O que me fez filosofar?', por Colin McGinn

Publicação compartilhada do site CRÍTICA NA REDE, de 11 de Setembro de 2023   

O que me fez filosofar?

Por Colin McGinn

Tradução de Célia Teixeira

Nasci em 1950, cinco anos depois do fim da segunda guerra mundial, em West Hartlepool, no distrito de Durham, numa pequena cidade mineira no nordeste da Inglaterra. O hospital em que nasci era um albergue convertido, ou, como diríamos hoje em dia, um asilo para pessoas sem abrigo. A minha mãe tinha vinte anos, o meu pai vinte e seis, e eu era o primeiro filho. Os meus avôs — que se chamavam ambos “Joseph”, como o meu pai — trabalhavam nas minas de carvão; assim como todos os meus tios à excepção de um, que era carpinteiro e pedreiro. A esperança média de vida dos mineiros era baixa, e os meus avôs morreram os dois novos, com doenças profissionais. Todas as pessoas na minha família eram baixas, magras e robustas. O meu avô paterno era conhecido na mina como “Joe, o agitador” pelas suas actividades na luta por melhores condições de trabalho; acabou por se tornar secretário do sindicato local de mineiros, e lia Karl Marx e Rudyard Kipling nos tempos livres. Era um homem amável e distante, não muito dado a conversas, que adorava os seus cigarros sem filtro. Não me lembro de ver uma única vez a minha avó, pequena e de voz aguda, que praguejava constantemente, com dentes; mastigava carne com as gengivas. Fazia parte da sua maneira habitual de falar dizer “vós” e “ides”, como “Vós conheceis Jack Ridley”. Sobre uma faca cega, diria coisas como “Poderia ir a Londres montada de cu ao léu nisto”, terminado com uma risada rouca e aguda. Não tenho qualquer memória do meu avô materno, apesar de a sua viúva permanecer miraculosamente viva com noventa anos. O meu pai abandonou a escola aos catorze anos e foi para as minas, tendo como primeiro trabalho retirar pedras do carvão, à medida que este passava por um enorme tapete rolante. Mas rapidamente fugiu a esta forma de enterro prematuro, e foi para uma escola nocturna aprender construção civil. Foi suficientemente proficiente para se tornar administrador-geral de uma pequena companhia de construção, ainda na casa dos vinte anos, e fez carreira como administrador de várias secções do departamento de construção da cooperativa, em diferentes partes da Inglaterra. Reformou-se cedo e tem agora uma segunda profissão como pintor, pintando sobretudo paisagens das cidades mineiras onde cresceu. Alguns dos seus trabalhos encontram-se no registo histórico da galeria que serve a área que as suas pinturas retratam. Os meus dois irmãos, Keith e Martin, também são artistas, apesar de eu nunca ter sido muito bom nesse departamento.

Não guardo qualquer memória dos meus primeiros três anos no nordeste da Inglaterra; quando tinha três anos, mudámo-nos para Gillingham, em Kent, no sudeste. Que diferença fazem quatrocentos e oitenta quilómetros. Kent é conhecido como o “jardim de Inglaterra”, enquanto o distrito de Durham era um local com montes fumegantes de escória, ruas estreitas e inclinadas, e casas de banho exteriores geladas. Em Gillingham, tirei partido das florestas e dos campos, ganhando um especial interesse pela vida selvagem — em particular, lagartos e borboletas —, crescendo o suficiente para me tornar o mais alto McGinn de que havia registo (tenho um metro e setenta) — até o meu gigante irmão mais novo me tomar o lugar, com um impressionante metro e oitenta. Aos onze anos, fiz o mal afamado exame da quarta classe, um exame escolar para determinar em que tipo de escola iremos passar o resto dos nossos anos escolares, e não me saí suficientemente bem para ir para uma grammar school.1 Assim, fui enviado para uma escola técnica, onde supostamente aprenderia as competências necessárias para me tornar um comerciante ou um técnico. Contudo, depois de apenas oito anos em Gillingham, voltámos a mudar-nos, desta vez para Blackpool, no nordeste; e, depois de vários contratempos, mandaram-me para a moderna escola secundária local — um passo atrás relativamente à escola técnica do sul.

Blackpool é uma cidade rude, dura e aberrante do litoral, ventosa e húmida, frequentada principalmente por operários a fazer férias baratas. As ruas estão cheias de bares, casas de fish-and-chips2 e casas de diversão com máquinas de jogos. Cultural é que não é. No entanto, havia uma sensação de privilégio entre os habitantes, até mesmo um certo tipo de snobismo, uma vez que havia pessoas que de facto pagavam bom dinheiro para visitar o local. As principais actividades dos rapazes naquela cidade eram beber e brigar, e tentativas desajeitadas de tirar partido das miúdas debaixo do píer. A escola que frequentei era tosca e filistina, dedicando-se sobretudo a tentar controlar os estudantes, de formas por vezes hilariantes (a atarracada directora da escola dava, efectivamente, pelo nome de Menina Bloomer3 — “Keks” para os rapazes, do dialecto local para “cuecas”). Numa ocasião o professor de educação física castigou os estudantes todos do mesmo ano — perto de noventa — porque alguém tinha atirado batatas fritas para cima da parede de cacifos da piscina e ninguém revelava a identidade do culpado. Ao todo, fui castigado três vezes, das outras duas igualmente por nenhuma razão especial (o que muito me magoou). Não era uma escola com base na qual se pudesse esperar que alguém viesse a ser alguma coisa; a maioria dos rapazes que por lá conheci já tinham um emprego mal pago, aos dezasseis anos. Apesar de tudo, sempre me dei muito bem com a matemática e com o inglês (mas, caramba, era mesmo mau a geografia). Fazia questão de acabar os trabalhos de casa o mais depressa possível e de passar a maior parte do meu tempo a fazer desporto, a tocar bateria numa banda de rock e a aperfeiçoar as minhas técnicas de pinball.

Apesar de tudo, portei-me suficientemente bem nos exames de nível O,4 feitos aos dezasseis anos, de modo a permitir-me passar para uma grammar school, para estudar para os exames de nível A. Nesta, fui espectacularmente suplantado pelos meus colegas, que me pareciam verdadeiros génios, relativamente falando. Alguns destes rapazes até liam livros por prazer! Eu era um leitor incansável de livros para crianças quando era novo, especialmente das histórias do Dr. Doolittle, mas desde a adolescência que não lia praticamente coisa alguma — só a ocasional história de terror ou de ficção científica. Ler tinha perdido a magia para mim por volta dos catorze anos, quando, por coincidência, as hormonas entraram em acção. Aquilo em que era bom e de que gostava era o desporto, especialmente a ginástica e o salto à vara (relativamente ao qual detinha o recorde da escola). Fazia também parte do grupo de mods,5 que prestavam particular atenção aos seus penteados e roupas (cabelo penteado para trás, fatos elegantes, sapatos de dança). Nesta altura, nem sequer contemplava a possibilidade de ir para universidade, e a ideia nunca fora mencionada na minha casa; não era algo que um McGinn tivesse alguma vez feito. Os meus professores esperavam que me tornasse um professor de educação física, devido aos meus talentos desportivos e à minha habilidade moderada com a aprendizagem livresca. Pessoalmente, estava mais virado para me tornar um acrobata de circo ou um percussionista profissional. Mas um dia na escola perguntaram-nos se gostaríamos de tentar ir para universidade, e eu pensei que talvez valesse a pena tentar. E, em qualquer caso, já se faziam sentir grandes mudanças no meu desenvolvimento mental. A minha vida começou a mudar-se para a minha cabeça, pelo menos em parte. Até à altura, a minha maior preocupação tinha sido desenvolver a coordenação física, daí os desportos e a bateria, mas agora também o meu espírito começava a ansiar por actividade. Era como se se tivesse ligado um interruptor: os circuitos começaram a zumbir.

Tinha ficado sob a influência de um professor, o Senhor Marsh, que me ensinou teologia de nível A. Já tinha ficado muito impressionado com as aventuras intelectuais descritas por James Joyce em O Retrato do Artista Quando Jovem, que fazia parte das leituras recomendadas para a disciplina de Inglês do último ano (Economia era o meu terceiro exame de nível A). Mas o senhor Marsh acendeu em mim o interesse por estudar e pensar, sobretudo sobre religião e teologia. Era um professor rigoroso, mas amável — cristão devoto, com um interesse apaixonado pelos seus estudantes. Quando olho retrospectivamente, vejo-o como um homem apaixonado por aprender e pela erudição (a sua palavra favorita era “erudito”), mas que não tinha a competência necessária para chegar a professor universitário. Falava dos seus dias como estudante universitário como se tivesse sido um verdadeiro paraíso, os seus olhos flamejantes com o entusiasmo da recordação. Ensinou-nos a Bíblia com grande intensidade, mas não como um prosélito — nutria um fascínio genuíno por questões teológicas. De vez em quando, mencionava alguns filósofos, à medida que ia discutindo alguns temas contenciosos — como, por exemplo, a plausibilidade de uma virgem ter dado à luz — e foi da sua boca que pela primeira vez ouvi o nome de Descartes.

Descartes foi descrito como alguém que está sentado junto do seu fogão, num frio dia de Inverno, a duvidar de tudo, até mesmo do mundo exterior e da existência de mentes além da sua. Tudo o que sobrou foi o seu próprio eu como ser pensante. A finalidade era mostrar a futilidade da dúvida e a importância da fé: se duvidássemos dos acontecimentos da Bíblia, acabaríamos por duvidar de tudo. No final, o senhor Marsh defendeu triunfantemente que Descartes só poderia acreditar na sua própria existência como mente solitária — era aqui que a dúvida nos levaria! Isto era muito estranho — dramaticamente oposto ao senso comum — e, no entanto, parecia-me haver uma certa lógica nas dúvidas de Descartes, independentemente das suas implicações religiosas (na verdade, Deus tem uma importância central no sistema de Descartes, mas o senhor Marsh nunca o mencionou).

Em resultado destas intromissões filosóficas, comecei a dar uma vista de olhos em alguns livros elementares de filosofia (se é que há tal coisa). Naturalmente, estava muito preocupado com a questão de saber se se poderia estabelecer racionalmente a existência de Deus, especialmente porque nessa altura me considerava um crente cristão: não que tenha sido criado desse modo, mas tinha sido levado a tais crenças ao estudar a Bíblia, sob o entusiasmo do senhor Marsh. E quando se passa a acreditar em Deus, com tudo o que isso implica, fica-se com curiosidade sobre os fundamentos intelectuais da crença. Será apenas uma questão de fé cega ou poderá a existência de Deus ser demonstrada? E ao fazer estas perguntas, fui rapidamente levado ao problema geral de saber o que é afinal de contas uma justificação, assim como a perguntas sobre o conhecimento, a certeza, o livre-arbítrio e a origem do Universo. Deus pode ou não ser um filósofo, mas é certamente responsável por muita filosofia.

E foi neste momento que ocorreu a minha primeira epifania filosófica. Estava sentado no meu quarto, frio e sem aquecimento, em Blackpool, com a minha bateria no canto, a ler sossegadamente um livro sobre argumentos a favor da existência de Deus (já não me lembro que livro era). Deparei-me com algo chamado “argumento ontológico” inventado por Santo Anselmo da Cantuária, na Idade Média. Achei o argumento difícil de seguir, mas completamente arrebatador (muita da filosofia é assim). Li e reli as palavras vezes sem conta, tentando captar o seu significado, à medida que os meus pés iam arrefecendo. A sensação que tive foi que o meu espírito ficou dominado pelo raciocínio abstracto, sendo levado à força pelo poder da lógica. O argumento ontológico tem a seguinte estrutura: Deus é, por definição, o ser mais perfeito que podemos conceber. Reúne todas as perfeições numa única entidade — absolutamente bom, perfeitamente sábio, infinitamente poderoso. Isto é apenas aquilo que queremos dizer com a palavra “Deus” e, aparentemente, podemos dizê-lo quer Deus exista, quer não. Como Anselmo colocou a coisa, Deus é definido como aquele ser “maior que o qual nenhum outro pode ser concebido”. Isto é, se Deus existe então, por definição, é a soma de todas as perfeições — do mesmo modo que se um unicórnio existisse, teria um único corno. A questão colocada por quem duvida da existência de Deus é se há alguma coisa na realidade que satisfaça esta descrição. Sim, Deus seria o ser mais perfeito se existisse: mas será que existe? Afinal de contas, posso definir a palavra “Daus” deste modo: “aquela pessoa que consegue saltar mais de dez metros de altura, descalça e com a maior das facilidades”; mas isto não nos diz se Daus existe mesmo — e, na verdade, Daus não existe. Pode-se pensar que a questão de saber se Deus existe é análoga a esta; sabemos qual é a definição da palavra “Deus”, mas o que não sabemos é se existe de facto alguma coisa que satisfaça essa definição. Um agnóstico que duvida da existência de Deus, certamente que sabe perfeitamente bem qual é o significado da palavra “Deus” — assim como todos nós sabemos o significado de “unicórnio”. Assim, pode-se pelo menos conceder que o ateísmo é uma posição logicamente consistente; não é o mesmo que dizer que os triângulos não têm três lados, algo que é falso por definição. A questão de saber se Deus existe é uma questão de facto, e não uma questão de definição.

Mas, argumenta Anselmo, isto é falso: o ateísmo não é, afinal, uma posição logicamente consistente. Porquê? Porque nos estamos a esquecer que Deus é definido como o ser mais perfeito que possamos conceber a todos os níveis — e não é melhor existir do que não existir? Se Deus não existir, carece do atributo de existência; mas então não será menos perfeito do que um ser semelhante com esse atributo? Imagine-se dois seres semelhantes nas suas perfeições, excepto no facto de um existir e do outro não. Não terá o ser que existe mais perfeições do que o outro, uma vez que pelo menos existe? Não existir é uma espécie de falta, uma carência, mas Deus é definido como o ser a quem nada falta, que não carece de qualquer qualidade positiva, que tem tudo como deve ser, que tem tudo. Tal ser tem de existir, senão não tem todas as qualidades positivas. Assim, a existência de Deus segue-se de facto da definição de Deus, ao contrário do meu exemplo de Daus, o saltador que não existe. Quando se compreende o significado da palavra “Deus” fica-se a saber que Deus existe, uma vez que aquilo que queremos dizer essa palavra é simplesmente o ser mais perfeito, e a existência é uma das perfeições. A existência é um atributo que acresce ou aumenta o grau de perfeição de uma entidade e, portanto, o ser mais perfeito concebível tem de ter esse atributo.

Imagine-se a entidade mais poderosa concebível: não terá tal entidade de existir, pela simples razão que não existir é uma redução drástica do poder de uma entidade? Na sua lapidar forma clássica, na qual pela primeira vez o conheci, o argumento é o seguinte: Deus é definido como aquele ser maior que o qual nenhum ser pode ser concebido; mas a existência é um atributo que contribui para a grandeza; logo, Deus existe. Assim, Deus existe em função do significado das palavras, como uma espécie de necessidade conceptual; portanto, é logicamente incoerente duvidar da sua existência, como se isso pudesse ser uma questão diferente da questão de saber o que queremos dizer com a palavra “Deus”. A existência de Deus é logicamente necessária, uma questão puramente de definição, e não uma questão sobre factos contingentes. O caso de Deus é assim muito diferente do caso do unicórnio, cuja definição não implica a sua existência.

Ora, isto é um raciocínio surpreendente. Pretende-se estabelecer por meio de um argumento logicamente rigoroso que não se pode negar de maneira razoável a existência de Deus. Não é necessário apelar para saltos de fé, nem para especulações acerca de como o mundo começou, nem para a ocorrência de milagres. Para alguém como eu, aos dezoito anos, que lutava com a questão de saber se Deus existe, isto era absolutamente inesperado. A existência de Deus era, afinal, tão sólida como o facto de quatro ser o número inteiro a seguir a três. Mas, à medida que fui estudando o argumento, relendo-o, tentando compreender o seu funcionamento (com os meus pés cada vez mais frios), senti indistintamente que o raciocínio parecia, de algum modo, mais inteligente do que poderia ser, tornando demasiado fácil a questão de saber se Deus existe, e tornando a fé irrelevante. Assim, ao mesmo tempo que estava impressionado com o argumento, e durante algum tempo obcecado com ele, fiquei com sentimentos ambivalentes. Muita da filosofia é assim: cativante, momentosa, mas também preocupante, e irritantemente perturbadora.

Acho que aquilo que verdadeiramente me abalou naquele dia foi a consciência do poder da razão — de como o pensamento lógico pode produzir resultados enormes e chocantes. Não se trata de dizer que continuo a acreditar na solidez do argumento ontológico, apesar de não achar que haja algo de obviamente errado com ele. Mas é um argumento fascinante, simples e, contudo, intrincado; e agora não estou de modo algum surpreendido com o impacto que teve no meu eu dos dezoito anos. Naquele dia, soube que queria aprender mais destas coisas da filosofia. Independentemente de tudo o resto, o argumento era simplesmente super inteligente. Imagine-se como o Anselmo se deve ter sentido no dia em que inventou o argumento ontológico; deve ter andado pela Cantuária estonteado de emoção e de temor durante semanas. (Não havia, infelizmente, um Santo Anselmo de Blackpool, cujo santuário eu pudesse visitar.) De facto, o argumento foi amplamente aceite pelos mais importantes filósofos que o sucederam, e, assim, é considerado um dos argumentos filosóficos mais influentes da história. Aquilo que também me impressionou, naquele dia de Inverno em Blackpool, foi o facto de o meu espírito poder entrar em contacto com os espíritos dos grandes pensadores do passado, e de poder elevar-me acima das banalidades monótonas da cidade litoral na qual por acaso vivia. Esta qualidade da filosofia ficou sempre comigo, e sinto-a ainda hoje, à medida que escrevo estas palavras (também numa cidade do litoral particularmente pouco fascinante: Mastic Beach, Long Island). A filosofia pode erguer-nos e levar-nos para muito longe.

Por volta desta altura, comecei a ler livros de C. E. M. Joad, a conselho do senhor Marsh. Joad escreveu livros de filosofia acessíveis para o grande público, e costumava falar regularmente na rádio da BBC, nos anos cinquenta do século XX. Não era um filósofo original, retirando a maioria das suas ideias de Bertrand Russell — de quem falaremos mais adiante. (Uma vez pediram a Russell para escrever um prefácio laudatório a um livro de Joad, a que respondeu, com mau humor: “Seria falta de modéstia fazê-lo”.) A paixão do Joad era a percepção, e era um entusiasta do “argumento da ilusão”. A questão em causa é saber se realmente vemos objectos físicos lá fora, no espaço, ou apenas itens subjectivos nos nossos espíritos. Normalmente, supomos que estamos o tempo todo a ver objectos físicos, e que também lhes tocamos: vemos comboios e aviões e barcos, e tocamos em maçanetas e em chávenas e em corpos. O que poderia ser mais óbvio e de senso comum? Contudo, durante séculos, os filósofos estavam convencidos que isto era apenas um erro comum, uma mera forma de falar que ocultava a verdade acerca da percepção. Aquilo que realmente percepcionamos são elementos dos nossos próprios espíritos — os quais têm sido designados de várias maneiras: dados dos sentidos, impressões, experiências, representações. A percepção não é uma faculdade que revela as formas do mundo físico exterior aos nossos espíritos, que se encontram confinados a uma colecção totalmente interior de itens mentais. A única realidade que podemos alguma vez literalmente percepcionar é uma realidade virtual, um mundo-sombra de sensações efémeras. Daí os filósofos terem designado a ideia de senso comum acerca da percepção de “realismo ingénuo”: tal como o Sol realmente não se levanta, nem a Terra é plana, também não percepcionamos realmente os objectos físicos — isto são puras ilusões ingénuas. Aquilo que percepcionamos está dentro de nós, e não lá fora, como ingenuamente pensamos.

Como haveria alguém de rejeitar deste modo o senso comum? Eis o argumento canónico, exposto por Joad com grande força e clareza, seguindo uma longa tradição. Vejamos o caso das ilusões e das alucinações, tal como ver uma vara direita parecer torta dentro de água, ou imaginar ratazanas cor-de-rosa quando se está sob a influência do LSD. A vara parece arqueada, como uma vara arqueada o pareceria, e as ratazanas parecem cor-de-rosa, como as ratazanas cor-de-rosa reais pareceriam, se existissem. As ilusões são, precisamente, uma imitação da realidade, e é por isso que nos podem iludir. Portanto, não há qualquer diferença subjectiva entre a percepção ilusória e a percepção real ou “verídica”: o mundo parece-nos de uma certa forma, e a forma como nos parece pode ser ilusória ou verídica, dependendo de o mundo ser ou não do modo como nos parece. Do ponto de vista subjectivo, não há qualquer diferença entre o punhal da alucinação de Macbeth e um verdadeiro punhal — e é por isso que as ilusões podem ser tão assustadoras como as coisas reais. Mas no caso da alucinação não vemos qualquer objecto físico real — não existe qualquer objecto no mundo real que responda à nossa percepção. Contudo, certamente que percepcionamos algo, a nossa mente não está vazia — as coisas de facto parece que são de certa forma para nós. Portanto, nesse caso, devemos estar a ver algo distinto de um objecto físico, e este algo tem de ser de natureza mental. Chamemos a esse algo “dados dos sentidos”: portanto, podemos dizer que vemos dados dos sentidos de varas arqueadas, de ratazanas cor-de-rosa, de punhais, mesmo que não estejamos a ver qualquer um desses objectos físicos. Percepcionamos a aparência subjectiva das coisas, e não as coisas em si, uma vez que as coisas não podem ser percepcionadas. Aquilo de que temos consciência no caso das ilusões e das alucinações não é dos objectos físicos, mas dos dados dos sentidos, que são internos e não físicos. Mas, sendo assim, como referimos, não há qualquer diferença subjectiva entre o caso ilusório e o caso subjectivo: as coisas têm o mesmo aspecto em ambos os casos; temos a mesma experiência; não conseguimos distinguir uma da outra. Não significará isto que também temos de percepcionar os dados dos sentidos no caso verídico habitual? Quando “vemos” um punhal verdadeiro vemos os dados dos sentidos de um punhal; o que se passa é que, neste caso, existe de facto um punhal que corresponde aos nossos dados dos sentidos com aspecto de punhal, dados dos sentidos esses que percepcionamos directamente. Assim, aquilo que imediatamente percepcionamos é sempre os dados dos sentidos, e não a coisa real. Logo, não vemos directamente objectos físicos, mas apenas os seus representantes, na forma mental de dados dos sentidos. É como tentar ter um encontro com o chefe de estado mas só conseguir chegar aos seus emissários. A nossa consciência directa pára ao nível dos dados dos sentidos, e não se alarga, de modo a apoderar-se dos objectos físicos reais. Talvez possamos dizer que percepcionamos os objectos físicos indirectamente, como quando só vemos os reflexos de uma coisa qualquer num espelho, ou as pegadas de alguém na neve. Mas não são os objectos que se apresentam imediatamente à mente quando temos uma experiência visual. Aquilo que se apresenta imediatamente à nossa mente é a nossa mente em si — os seus conteúdos sensoriais presentes.

Isto é um resultado alarmante. Restringe a nossa consciência ao nosso próprio eu subjectivo, separando-nos do mundo dos objectos físicos com os quais ingenuamente pensávamos estar em contacto. A consciência coloca-nos em contacto apenas com os seus próprios conteúdos: um jogo de imagens numa televisão mental. Quando me deparei pela primeira vez com este argumento, fiquei a olhar fixamente para a mobília à minha volta, tentando forçar a minha mente a tomar consciência da mobília, para penetrar para lá do véu dos dados dos sentidos; mas tinha a sensação sufocante de que estava apenas a contemplar mais energicamente aquilo que estava dentro de mim — o meu próprio mundo subjectivo, e não o mundo público comum em que havia acreditado até então. Existia apenas, na melhor das hipóteses, uma correspondência entre o mundo subjectivo de que tinha experiência e o mundo físico para lá deste, mas não havia forma de poder sair do meu mundo subjectivo para verificar se a correspondência se dava de facto — uma vez que não tinha acesso directo aos objectos físicos que supostamente correspondem aos meus dados dos sentidos. De certo modo, foi como se descobrisse que era cego: não conseguia ver objectos físicos! Nem podia tocar-lhes, prová-los ou cheirá-los. O meu mundo tinha-se reduzido, restando apenas o meu eu consciente. Eu era, suponho, tão egocêntrico como muitos outros adolescentes, mas isto era demais. Tinha perdido o mundo — ou melhor, nunca o tinha tido desde o início.

E a partir daí as coisas só pioraram. Se nunca percepcionamos objectos físicos, como sabemos que existem mesmo? Certamente que não o podemos saber por meio da percepção. Normalmente, pensamos que podemos saber o que está numa sala indo lá ver. Mas não é assim: tudo o que determinamos desta forma é quais são os dados dos sentidos temos depois de termos os dados dos sentidos de entrar na sala; os objectos permanecem exasperantemente fora do nosso alcance. Daqui até ao cepticismo cartesiano industrial total é só um pequeno passo: tudo aquilo que sabemos que existe são os nossos próprios estados subjectivos, e não os objectos que estão supostamente lá fora, no mundo físico exterior. De facto, que direito temos de acreditar que existe realmente um mundo físico exterior? Não se poderá dar o caso dos nossos dados dos sentidos não corresponderem a coisa alguma externa? Não poderá tudo ser um sonho? Descartes pediu-nos para imaginar um génio maligno que produziu os dados dos sentidos, assegurando-se de que nada lhes correspondesse, de modo a que todas as nossas experiência sensoriais não passassem de uma longa alucinação. Como podemos excluir esta possibilidade? Não o podemos fazer apelando simplesmente para os nossos dados dos sentidos, pois estes seriam os mesmos quer tivessem sido causados por objectos físicos, quer tivessem sido causados pelo génio maligno. Como podemos sequer saber que temos corpo? Como podemos de facto saber que não começámos a existir há cinco segundos, equipados com uma grande diversidade de pseudomemórias? O conhecimento parece reduzir-se aos estados internos do nosso eu momentâneo.

A versão actualizada do génio maligno de Descartes é o cenário do “cérebro numa cuba”. Neste caso, supomos que os nossos cérebros foram removidos das nossas cabeças por cientistas alienígenas com uma avançadíssima tecnologia sobre cérebros. Os cientistas colocam os nossos cérebros em cubas nutritivas, em pequenos e bonitos cubículos, cada um deles assinalado com o nosso nome. Depois, ligam os cérebros a uma máquina que envia impulsos eléctricos aos nossos nervos sensoriais, os quais resultam em dados dos sentidos: percepcionamos coisas familiares, mas sempre através destas simulações eléctricas. Assim, sentimos que estamos num bar em Nova Iorque a falar com os nossos amigos, quando de facto estamos enfiados numa cuba algures em Cleveland, a alucinar tudo isto. O que os cientistas estão a fazer é a produzir uma mera simulação do mundo físico normal — um mundo virtual de puros dados dos sentidos. Eles também supervisionam astutamente as nossas decisões para mexer os nossos corpos (dos quais, habilidosamente, se livraram) enviando-nos impulsos sensoriais que correspondem àquilo que decidimos fazer. Se eu decidir ir ao frigorífico buscar uma cerveja, eles dão-me a sensação de que movimento os meus membros e de a cozinha começar a aparecer e de uma porta do frigorífico a abrir, de modo a que não posso determinar qual é a minha verdadeira situação. Percepciono a garrafa na minha mão e depois a cerveja a correr pela minha garganta abaixo, mas de facto não existe qualquer cerveja, ou garganta ou mão — apenas um cérebro ligado a uma data de fios e a um computador gigante a sussurrar ao canto da sala. Ora, a pergunta horrível é: como sei que não sou, neste momento, um cérebro numa cuba? Se o fosse, as coisas não me pareceriam minimamente diferentes, pelo que o modo como as coisas parecem não pode excluir a hipótese da cuba. Posso muito bem ser, neste preciso momento, um cérebro imóvel, a que é dada a ilusão de que é uma pessoa que anda, fala e está em contacto com objectos físicos reais. Provavelmente, nunca conheci um único objecto físico na minha vida, incluindo os objectos físicos a que chamamos “pessoas”. Talvez o solipsismo seja verdadeiro, e eu estou completamente só com os meus dados dos sentidos. Talvez o Universo todo seja uma parede tremeluzente de ilusão, sendo a minha consciência a única realidade. Quando vou a algum lado, também vai tudo o resto, uma vez que não existe tudo o resto.

Fiquei satisfeito ao ver recentemente que este tormento tinha sido convertido como base de um argumento para um filme de ficção científica: The Matrix. Neste filme, seres humanos imobilizados estão empilhados em quilómetros de altura dentro de cubículos e ligados a um computador que cria nos seus cérebros uma simulação do mundo real. As máquinas tinham-nos feito isto de modo a retirar nutrientes dos corpos dos seres humanos; tornámo-nos comida industrial para computadores. Aceitamos esta forma de parasitismo, porque não sabemos que é isto que se passa, uma vez que tudo nos parece bastante normal. Apenas um pequeno grupo de rebeldes conhecem a verdadeira situação, e estão determinados a libertar a humanidade. A premissa básica de todo o filme é que se esta fosse a nossa situação não o saberíamos: a Matrix ter-nos-ia iludido. Aposto que os criadores do filme tiveram uma ou outra cadeira de filosofia na faculdade e que ficaram desde aí perturbados com as possibilidades colocadas pelo cepticismo cartesiano. E todo o desenvolvimento contemporâneo a respeito das máquinas de realidade virtual depende da possibilidade de se simular o mundo real, eliminando assim a conexão entre a aparência da realidade. Afinal, temos as experiências que temos devido aos sinais que atingem os nossos nervos sensoriais, que activam partes do nosso cérebro; se conseguirmos produzir esses sinais sem a ajuda de objectos físicos reais, então poderemos simular a percepção de objectos, sem nos preocuparmos minimamente com a realidade. No que diz respeito à percepção, a realidade pode ser dispensada, pelo menos em princípio.

Mais uma vez, aquilo que mais me surpreendeu aos dezoito anos, quanto a estes argumentos, foi o poder da razão para deitar por terra suposições que eu tomava como garantidas. Não se tratava de aceitar inteiramente os argumentos, mas são sem dúvida suficientemente lógicos — e abalam uma parte central da nossa visão de senso comum acerca do nosso lugar no mundo. As nossas crenças de senso comum não são tão racionalmente inquestionáveis como tão ingenuamente supúnhamos antes de questionarmos os seus fundamentos. O argumento da ilusão é como uma onda gigante de raciocínio que nos abandona numa praia estranha e desconhecida, deixando-nos exaltados mas perturbados. E repare-se como este argumento se combina com o argumento ontológico: parece que a razão consegue provar a existência de Deus, mas também conduz ao resultado de que não podemos saber que existe o mundo do dia-a-dia de mesas e cadeiras. Pensávamos que a existência de Deus era racionalmente questionável mas que a existência do mundo exterior era sólida como uma pedra, mas a razão diz-nos que podemos estar mais seguros da existência de Deus do que da existência do nosso vizinho. As divindades são mais certas do que as mesas e as cadeiras! Posso saber com segurança que existo e que Deus existe, mas tudo o resto é questionável. Quem haveria de dizer? O que me pôs no caminho para me tornar filósofo foi querer saber se isto era mesmo assim; os argumentos pareciam convincentes, mas será que eram tão convincentes quanto pareciam? Queria compreender melhor os argumentos, de modo a poder decidir em que acreditar. Aquilo que estou a realçar agora é o impacto que esses argumentos tiveram no meu impressionável espírito de adolescente — como me levaram a pensar. Comecei a aperceber-me de que mesmo a crença mais comum poderia estar errada, que poderia ser mero preconceito — que tudo tinha de estar aberto ao escrutínio racional. Se isto era verdadeiro no que diz respeito à crença no mundo exterior, não o seria ainda mais no caso das crenças sociais e políticas que eram tomadas como evangelhos?

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Colin McGinn

Como Se Faz Um Filósofo (Lisboa: Bizâncio, 2007)

Notas

Escola para preparar os estudantes para a universidade. N. da T. 

Comida tradicional inglesa servida de modo a poder ser comida de pé e até a caminhar: filetes fritos de peixe com batatas fritas. N. da T. 

Bloomer significa “disparate”. N. da T. 

No sistema britânico, os exames de nível O (da palavra inglesa ordinary, que significa “comum”) eram feitos entre os 15 e os 16 anos de idade como exames de conclusão da escolaridade mínima obrigatória. Depois de cumprida a escolaridade mínima obrigatória e de passar nestes exames, os estudantes podem estudar mais dois anos para se prepararem para os exames de nível A (da palavra inglesa advanced, que significa “avançado”) que são exames de admissão à universidade. N. da T. 

Os mods eram grupos de jovens de meados dos anos sessenta do século XX que se opunham aos rockers e, mais tarde, nos anos setenta, aos skinheads. O nome mod deriva de “modernista”. N. da T.

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Texto reproduzido do site: criticanarede com/fezfilosofa

sábado, 9 de setembro de 2023

Domenico De Masi, sociólogo italiano, morre aos 85 anos

Legenda da foto: Sociólogo italiano Domenico de Masi — (Crédito da foto: Divulgação)

Publicação compartilhada do site G1 GLOBO, de 9 de setembro de 2023 

Domenico De Masi, sociólogo italiano, morre aos 85 anos

O intelectual foi responsável pela formulação do conceito de "ócio criativo" e teve grande influência na criação do Movimento 5 Estrelas, partido da Itália.

Por g1

Criador do conceito de '"ócio criativo", autor de mais de 20 livros e um dos pensadores mais influentes do final do século XX, o sociólogo italiano Domenico De Masi morreu aos 85 anos, em Roma. A informação foi confirmada neste sábado (9).

Segundo o jornal italiano "Il Fatto Quotidiano", De Masi descobriu que estava doente em 15 de agosto, durante suas férias em Ravello, na costa Amalfitana. Até a última atualização desta reportagem, a causa da morte ainda não havia sido comunicada.

Ele foi professor emérito de sociologia do trabalho na Universidade Sapienza de Roma e reitor da Faculdade de Ciências da Comunicação dessa mesma instituição.

Entre suas obras, está o best-seller "O Ócio Criativo", de 1995, que defende a noção de que o tempo livre não é algo necessariamente negativo, porque pode estimular a criatividade pessoal. Ele também escreveu livros como "Desenvolvimento Sem Trabalho", "A Emoção e a Regra" e "O Futuro do Trabalho".

O sociólogo nasceu em Rotello, em 1938, e tinha o título de Cidadão Honorário do Município do Rio de Janeiro.

Em junho deste ano, De Masi encontrou-se com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Roma. Os dois conversaram sobre a conjuntura política atual do Brasil e da Itália, e abordaram a necessidade de se estabelecer a paz tanto na Europa quanto no resto do mundo. Os dois já haviam se reunido em 2020.

'Crescimento sem emprego veio para ficar', diz sociólogo italiano Domenico De Masi

Domenico De Masi vê home office aliado do ócio criativo, mas adverte 'neuróticos' por trabalho

Importância do 'ócio criativo' e tecnologia

Home office, desemprego em massa e crise econômica eram assuntos recorrentes para o sociólogo Domenico de Masi muito antes da pandemia da Covid-19.

Neste contexto, ao participar como conferencistas da Feira Internacional do Livro de Ribeirão Preto (SP), em 2021, ele citou a importância da tecnologia, ao debater a importância do "ócio criativo" — conceito consagrado em seu best-seller com o mesmo nome publicado pela primeira vez em 1995, e que o tornou um dos pensadores mais influentes do final do século 20.

Ideia que, diferente do que muitos ainda entendem como falta do que fazer, consiste no uso do tempo livre para geração de riqueza, conhecimento e bem-estar...

Na visão do professor, o avanço tecnológico agora é estratégico para um cenário em que cada vez mais pessoas poderão desempenhar funções de qualquer lugar, pelo chamado "smart working", em uma rede de colaboração que extrapola as relações de trabalho.

"A tecnologia é o melhor e maior aliado do ócio criativo", disse em entrevista ao G1.

Mas Masi afirmou na época de que isso não deve significar mais tempo do dia dedicado às tarefas profissionais.

"As muitas pesquisas realizadas em todo o mundo mostram que, com o trabalho à distância, a produtividade aumenta de 15% a 20%. Isso significa que o teletrabalhador pode fazer em sete horas o que antes, no escritório, levava oito horas. Aqueles que, por teletrabalho, estenderam seu dia de trabalho em vez de encurtá-lo, são neuróticos que não podem viver sem trabalhar. Precisam de ajuda para se desintoxicar. O teletrabalho permite combinar trabalho, estudo e lazer: ou seja, permite o ócio criativo", afirma.

Influência na sociedade italiana

Durante a carreira, De Masi passou por diversos centros de estudos na Itália, incluindo a Universidade Frederico II, em Napoli, e a Universidade La Sapienza, em Roma, onde lecionou durante a maior parte da vida.

Em 1995, o intelectual fundou a Sociedade Italiana de Teletrabalho (SIT), responsável por divulgar e regulamentar o trabalho não estruturado no país.

Além disso, De Masi foi considerado um dos intelectuais mais próximos do Movimento 5 Estrelas, partido da Itália, depois de uma vida acadêmica próxima à esquerda. Seu trabalho influenciou muitos integrantes do grupo, incluindo Giuseppe Conte, que foi primeiro-ministro italiano entre 2018 e 2021.

"[A morte de De Masi,] acima de tudo, priva-nos de um verdadeiro homem de cultura, de uma mente muito clara, cujas análises tiveram o mérito de desafiar as convenções tradicionais sobre o trabalho e a sociedade, levando as pessoas a refletir sobre o significado do seu tempo e das suas paixões", afirmou o partido em comunicado.

Suas pesquisas sobre o mercado de trabalho foram fundamentais para a formação do partido, que ganhou influência na sociedade italiana nos últimos anos.

"O seu ponto de vista sobre as coisas sempre representou um importante ponto de referência para a comunidade do Movimento 5 Estrelas, que hoje lamenta aquele que foi antes de tudo um amigo de tantos de nós", disse o partido.

Repercussão

Presidente Lula

"Intelectual incansável e homem público apaixonado, sempre foi um defensor das causas sociais, do avanço das conquistas humanas e de um mundo mais justo e solidário. De Masi sempre foi muito atento e carinhoso com o Brasil, sempre visitando o país e sem nenhum medo de se posicionar, mesmo nos momentos mais difíceis", disse Lula, em texto nas redes sociais.

Giuseppe Conte, ex-primeiro-ministro da Itália

"Há talentos que estudam com paixão a vida inteira, que dominam matérias inteiras, tornando-se referência para toda a comunidade científica, e ainda assim mantêm a humildade e a curiosidade de quem sabe que ainda tem muito a aprender e, acima de tudo, nunca perdem de vista que no centro de tudo, do conhecimento, das nossas construções teóricas, das nossas realizações científicas, está o ser humano, com a sua dignidade irreprimível e indispensável. Isto é o que Domenico De Masi foi e muitas outras coisas", afirmou o ex-premiê nas redes sociais.

Roberto D'Avila, jornalista

"Uma das pessoas mais completas que eu conheci. Como ser humano, como homem de letras. Mas, acima de tudo, como ser humano", disse D'Avila à GloboNews.

Texto e imagem reproduzidos do site: g1 globo com

domingo, 12 de fevereiro de 2023

René Descartes

Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 11 de fevereiro de 2023

René Descartes

Desidério Murcho traduziu, para a Crítica, o verbete de John Cottingham sobre Descartes, do Cambridge Dictionary of Philosophy, ed. Robert Audi, aqui reproduzido:

Descartes (1596–1650) foi um filósofo e matemático francês, fundador da “idade moderna”, e talvez a figura mais importante na revolução intelectual do século XVII, na qual os sistemas tradicionais de entendimento, baseados em Aristóteles, foram postos em questão e, em última análise, rejeitados. A sua concepção de filosofia abrangia tudo: incluía a matemática e as ciências físicas, mas também a psicologia e a ética, e baseava-se no que proclamava serem fundações metafísicas absolutamente firmes e de confiança. A sua abordagem dos problemas do conhecimento, da certeza e da natureza da mente humana tiveram um papel de grande relevo na configuração do desenvolvimento subsequente da filosofia.

Vida e obra

Descartes nasceu numa pequena cidade perto de Tours que agora tem o seu nome. Foi criado pela avó materna (a mãe morreu-lhe pouco depois de nascer), e com dez anos foi enviado para o colégio jesuíta recentemente fundado de La Flèche, em Anjou, onde ficou nove anos como aluno interno. Em La Flèche estudou literatura clássica e disciplinas baseadas nos clássicos, como história e retórica, assim como filosofia natural (baseada no sistema aristotélico) e teologia. Mais tarde, escreveu que considerava La Flèche “uma das melhores escolas da Europa”, mas que, com respeito à filosofia que ali aprendera, deu-se conta de que apesar de ser cultivada durante muitos séculos pelos melhores espíritos, não continha ponto algum que não fosse disputado e, por isso, duvidoso.

Com vinte e dois anos (depois de se formar em direito em Poitiers), Descartes dedicou-se a uma série de viagens pela Europa, “tendo decidido”, como afirmou mais tarde, “não procurar outro conhecimento senão o que podia encontrar por mim, ou no grande livro do mundo”. A influência mais importante deste período inicial foi a sua amizade com o holandês Isaac Beeckman, que lhe despertou o interesse pela matemática, que haveria de manter toda a vida — uma ciência na qual via um tipo de precisão e certeza que verdadeiramente merecia o título de scientia (o termo de Descartes para o conhecimento sistemático genuíno baseado em princípios de confiança). Uma parte considerável das energias do jovem Descartes foi dedicada à matemática pura: o ensaio Geometria (publicado em 1637) incorporava resultados descobertos na década de 1620. Porém, Descartes considerava também que a matemática era a chave para progredir nas ciências aplicadas; a sua primeira obra, Compendium Musicae, escrita em 1618 e dedicada a Beeckman, aplicava princípios quantitativos ao estudo da harmonia e dissonância musicais. Mais em geral, Descartes considerava a matemática uma espécie de paradigma de todo o entendimento humano: aquelas longas cadeias constituídas por raciocínios muito simples e fáceis, que os geómetras usam habitualmente para chegar às suas mais difíceis demonstrações, fizeram-me pensar que todas as coisas no âmbito do conhecimento humano estão conectadas entre si do mesmo modo. (Discurso do Método, Parte III)

No decurso das suas viagens, Descartes deu consigo fechado, no dia 10 de Novembro de 1619, num “quarto aquecido com um fogão”, numa cidade do sul da Alemanha, onde, depois de um dia de meditação intensa, teve uma série de sonhos vívidos, que o convenceram da sua missão de encontrar um novo sistema científico e filosófico. Depois de regressar a Paris por algum tempo, emigrou para a Holanda em 1628, onde haveria de viver a maior parte do resto da vida (ainda que mudasse várias vezes de residência). Chegado a 1633, tinha concluído um tratado sobre cosmologia e física, Le Monde; mas suspendeu cautelosamente a publicação quando soube da condenação de Galileu pela Inquisição, por rejeitar (como também Descartes rejeitava) a teoria geocêntrica tradicional do Universo. Em 1637, porém, Descartes fez publicar, em francês, uma amostra do seu trabalho científico: três ensaios, intitulados Óptica, Meteorologia e Geometria. Como prefácio a esta selecção de ensaios encontrava-se uma introdução autobiográfica intitulada Discurso do Método de Conduzir Correctamente a Razão e de Chegar à Verdade nas Ciências. Esta obra, que abrange a discussão de várias questões científicas, como a circulação do sangue, inclui (na Parte IV) um sumário das perspectivas de Descartes sobre o conhecimento, a certeza e as fundações metafísicas da ciência. Foram as críticas aos argumentos aqui publicados que o levaram a compor a sua obra-prima filosófica, Meditações sobre a Filosofia Primeira, publicadas em latim em 1641 — uma exposição dramática da viagem de descoberta que começa com a dúvida universal e chega à certeza da sua própria existência, assim como a batalha que se lhe seguiu para estabelecer a existência de Deus, a natureza e existência do mundo exterior, e a relação entre a mente e o corpo. As Meditações suscitaram um interesse imenso entre os seus contemporâneos, e seis conjuntos de objecções de filósofos e teólogos célebres (incluindo Mersenne, Hobbes, Arnauld e Gassendi) foram publicadas no mesmo volume da primeira edição (um sétimo conjunto, da autoria do jesuíta Pierre Bourdin, foi incluído na segunda edição, de 1642).

Poucos anos depois, Descartes publicou em latim um compêndio titânico das suas perspectivas metafísicas e científicas, a obra Princípios de Filosofia, que tinha a esperança de ver tornar-se um manual universitário alternativo aos manuais comuns, baseados em Aristóteles. Em finais da década de 1640, começou a interessar-se por questões de ética e psicologia, em parte em resultado das perspicazes perguntas sobre as implicações do seu sistema, formuladas pela princesa Isabel da Boémia, numa longa e frutífera correspondência. Os frutos deste interesse foram publicados em 1649, num longo tratado francês de título As Paixões da Alma. No mesmo ano, depois de muito hesitar, Descartes aceitou um convite para ir para Estocolmo dar instrução filosófica à rainha Cristina da Suécia. Exigia-se-lhe que desse explicações no palácio real às cinco da manhã, e a tensão desta quebra dos seus hábitos (ao longo da vida, manteve o costume de ficar na cama até tarde) levou-o a apanhar pneumonia. Morreu pouco antes de completar cinquenta e quatro anos.

O sistema cartesiano

Numa analogia célebre, Descartes comparou a totalidade da filosofia a uma árvore: as raízes são a metafísica, o tronco a física, e os ramos são as várias ciências particulares, incluindo a mecânica, a medicina e a moral. A analogia capta pelo menos três aspectos importantes do sistema cartesiano. O primeiro é a sua insistência na unidade essencial do conhecimento, que contrasta fortemente com a concepção aristotélica das ciências como uma série de disciplinas separadas, cada qual com os seus próprios métodos e padrões de precisão. As ciências, como Descartes escreveu num livro de apontamentos da juventude, estão todas “ligadas entre si”, numa sequência que é em princípio tão simples e directa como a sequência dos números. O segundo ponto que a analogia da árvore manifesta é a utilidade da filosofia para a vida comum: a árvore é valorizada pelos seus frutos, e estes são recolhidos, faz notar Descartes, “não das raízes nem do tronco, mas da ponta dos ramos” — as ciências práticas. Descartes sublinha com frequência que a sua principal motivação não é a teorização abstracta em si: em vez da “filosofia especulativa que se ensina nas escolas”, podemos e devemos chegar a um conhecimento que seja “útil na vida”, e que um dia nos torne “senhores e donos da natureza”. Em terceiro lugar, comparar a metafísica ou “filosofia primeira” às raízes da árvore capta bem a crença cartesiana no que veio a ser conhecido como fundacionalismo — a perspectiva de que o conhecimento tem de ser construído a partir de baixo, e que nada pode ser tomado como estabelecido até se remontar aos princípios primeiros.

Dúvida e as fundações da crença

Na sua obra central de metafísica, as Meditações, Descartes dá início ao seu projecto de construção, observando que muitas das opiniões preconcebidas que aceitou desde a sua infância se revelaram inseguras; de modo que é necessário, “uma vez na vida”, “demolir tudo e começar de novo, a partir das fundações”. Por outras palavras, Descartes passa a aplicar aquilo a que por vezes se chama dúvida metódica, que é explicada no anterior Discurso do Método:

Dado que queria agora dedicar-me exclusivamente à procura da verdade, pensei que era necessário […] rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que se conseguisse imaginar a mínima dúvida, para ver se ficava com alguma crença que fosse inteiramente indubitável.

Nas Meditações vemos este método aplicado para dar origem a uma crítica sistemática das crenças anteriores, da maneira seguinte: tudo o que se baseia nos sentidos é potencialmente suspeito, dado que descobri pela experiência que os sentidos são por vezes enganadores, e é prudente nunca confiar completamente em quem nos enganou uma só vez que seja.

Mesmo juízos aparentemente inequívocos, como “estou aqui sentado à lareira”, podem ser falsos, dado que não há garantia de que a minha experiência actual não seja um sonho. O argumento do sonho (como veio a ser denominado) deixa intactas as verdades da matemática, dado que “esteja eu acordado ou a dormir, dois e três perfaz cinco”; mas Descartes introduz depois um argumento ainda mais radical a favor da dúvida, baseado no seguinte dilema: se há um Deus omnipotente, poderia presumivelmente fazer-me errar sempre que conto dois e três; se, por outro lado, Deus não existe, então devo as minhas origens não a um criador poderoso e inteligente, mas a uma série aleatória de causas imperfeitas, e neste caso há ainda menos razões para supor que as minhas intuições básicas sobre a matemática são de confiança.

No fim da Primeira Meditação, Descartes dá consigo num avassalador lamaçal de dúvida, que é dramatizado com a introdução de um demónio imaginário “maximamente poderoso e ardiloso” que está sistematicamente a enganá-lo de todas as maneiras possíveis. Tudo aquilo em que acredito — “o céu, a Terra e todas as coisas externas” — poderão ser ilusões que o demónio concebeu para me enganar. Contudo, mesmo esta dúvida extrema, quando a levamos ao máximo, tem como resultado a primeira verdade indubitável da procura cartesiana pelo conhecimento — a existência do sujeito que pensa: Engane-me o génio maligno tanto quanto puder, nunca poderá fazer que eu seja nada, enquanto eu pensar que sou alguma coisa […]. Eu sou, eu existo, isto é certo, sempre que afirmado por mim ou concebido pelo espírito.

Noutra passagem, Descartes exprime este argumento do cogito na expressão famosa Cogito ergo sum (Penso, logo existo).

Depois de estabelecer a sua própria existência, Descartes passa a fazer um inventário, na Terceira Meditação, das ideias que encontra em si, entre as quais identifica a ideia de um ser sumamente perfeito. Num argumento causal muito criticado, raciocina que o conteúdo representativo (ou “realidade objectiva”) desta ideia é tão grande que não pode ter tido origem no interior da sua própria mente (imperfeita), tendo antes de ter sido implantada nele por um ser efectivamente perfeito — Deus. Nunca é de mais destacar a importância de Deus no sistema cartesiano. Depois de estabelecer a existência da divindade, Descartes pode passar a restabelecer a sua crença no mundo que o rodeia: dado que Deus é perfeito, e que por isso não seria sistematicamente enganador, a forte propensão que nos deu para acreditar que muitas das nossas ideias vêm dos objectos externos tem, em geral, de ser sólida; e assim o mundo exterior existe (Sexta Meditação). Descartes usa a divindade, o que é ainda mais importante, para estabelecer um método confiável de procura da verdade. Os seres humanos, dado serem finitos e imperfeitos, enganam-se amiúde; em particular, os dados fornecidos pelos sentidos são frequentemente, como escreve Descartes, “obscuros e confusos”. Porém, cada um de nós pode evitar o erro, apesar disso, desde que nos lembremos de suspender o juízo nesses casos duvidosos, limitando-nos às percepções “claras e distintas” do intelecto puro. Um intelecto de confiança foi a dádiva de Deus ao homem, e se o usarmos com máximo cuidado possível, podemos ter a certeza de evitar o erro (Quarta Meditação).

Nesta parte central da sua filosofia, Descartes vai na peugada de uma longa tradição que remonta a Agostinho (com raízes últimas em Platão) e que começa por ser céptica quanto às provas dos sentidos, em contraste com as percepções abstractas mais confiáveis do intelecto, e que depois considera esse conhecimento intelectual uma espécie de iluminação derivada de uma fonte mais elevada do que a própria mente humana. Descartes usa amiúde a metáfora da Antiguidade da “luz natural” ou da “luz da razão” para dar voz a esta noção de que as intuições fundamentais do intelecto são inerentemente confiáveis. A designação “racionalista” que se aplica frequentemente a Descartes neste âmbito pode ser enganadora, dado ser certo que ele não se apoia apenas na razão: no desenvolvimento das suas teorias científicas, Descartes atribui um papel considerável à observação empírica para testar hipóteses e para compreender os mecanismos da natureza (a sua “teoria dos vórtices” das revoluções planetárias baseia-se em observações do comportamento dos redemoinhos).

O que é verdadeiro, apesar de tudo, é que os alicerces fundamentais da ciência cartesiana são ideias inatas (sobretudo as da matemática), cuja fiabilidade Descartes considera garantida por terem sido implantadas na mente por Deus. Porém, por seu lado, isto dá origem a um dos principais problemas do sistema cartesiano, que foi pela primeira vez sublinhado por alguns dos seus contemporâneos (nomeadamente, Mersenne e Arnauld) e que veio a ser conhecido como o círculo cartesiano. Se são de confiança as percepções claras e distintas do intelecto devido ao nosso conhecimento de Deus, então como pode esse conhecimento começar por ser estabelecido? Se a resposta é que podemos provar a existência de Deus a partir de premissas que percepcionamos clara e distintamente, então isto parece circular; pois como temos o direito, nesta fase, de pressupor que as nossas percepções claras e distintas são de confiança? As tentativas de Descartes para responder a este problema não são inteiramente satisfatórias mas, ao que parece, a sua resposta geral é que há algumas proposições que são tão simples e transparentes que, desde que nelas nos concentremos, podemos ter a certeza da sua verdade, mesmo sem garantia divina.

Ciência cartesiana e dualismo

O sistema científico a que Descartes se dedicara antes de escrever as Meditações e que elaborou na sua obra posterior, os Princípios de Filosofia, tenta reduzir os fenómenos naturais, sempre que possível, a descrições quantitativas da aritmética e da geometria: “a minha consideração da matéria em coisas corpóreas”, afirma nos Princípios, “não envolve senão divisões, formas e movimentos”. Isto relaciona-se com o seu compromisso metafísico de se apoiar apenas em ideias claras e distintas. Em vez do elaborado aparato dos escolásticos, com a sua miríade de “formas substanciais” e de “qualidades reais”, Descartes pretende matematizar a ciência. O mundo material é simplesmente uma série indeterminada de variações de forma, dimensão e movimento da matéria única, simples e homogénea a que chama res extensa (“substância extensa”). Nesta categoria inclui Descartes todos os acontecimentos físicos e biológicos, incluindo o comportamento complexo dos animais, que considera simplesmente o resultado de processos puramente mecânicos (acerca dos animais não-humanos como autómatos mecânicos, veja-se o Discurso, Parte V).

Contudo, há uma classe de fenómenos que não podem ser abordados desta maneira, do ponto de vista de Descartes; nomeadamente, a experiência consciente. O pensamento, afirma amiúde, é completamente alheio à extensão e com ela incompatível: não ocupa espaço, não tem extensão e é indivisível. Daí que Descartes avance uma teoria dualista da substância: além da res extensa que constitui o Universo material, há a res cogitans, ou substância pensante, que é inteiramente independente da matéria. E cada indivíduo consciente é uma substância pensante única: Este “eu” — ou seja, a alma, que me faz ser o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e não deixaria de ser o que é ainda que o corpo não existisse.

Os argumentos de Descartes a favor do carácter incorpóreo da alma foram postos em questão pelos seus contemporâneos, e têm sido fortemente criticados pelos comentadores posteriores. No Discurso e na Segunda Meditação, Descartes dá muita ênfase à sua capacidade para formar uma concepção de si próprio como sujeito que existe, ao mesmo tempo que duvida da existência de tudo o que é físico; mas isto, como os críticos fizeram notar, parece inadequado para estabelecer a conclusão de que ele é uma res cogitans — um ser cuja essência completa consiste simplesmente em pensar. Posso ser capaz de me imaginar sem corpo, mas isto dificilmente prova que eu poderia na realidade existir sem corpo (veja-se também a Sinopse das Meditações). Outro problema é que a nossa experiência quotidiana é testemunha do facto de não sermos seres incorpóreos, mas antes criaturas muito decididamente de carne e osso. “A natureza ensina-me, com as sensações de dor, fome, sede e assim por diante”, admite Descartes na Sexta Meditação, que não estou apenas presente no meu corpo como um marinheiro num navio, mas antes que estou a ele acoplado muito intimamente ou, digamos, misturado.

Contudo, como pode uma alma incorpórea interagir com o corpo nestes termos? Nos escritos posteriores, Descartes fala da “união entre a alma e o corpo” como uma “noção primitiva” (veja-se as cartas a Isabel de 21 de Maio e de 28 de Junho de 1643); com isto parece querer dizer que, tal como há propriedades (como o comprimento) que só pertencem ao corpo, e propriedades (como o entendimento) que só pertencem à mente, há também itens como as sensações, que são irredutivelmente psicofísicas, e que me pertencem na medida em que sou uma consciência incarnada. A explicação desses acontecimentos psicofísicos foi a tarefa a que se dedicou na última obra, As Paixões da Alma, desenvolvendo aí a teoria de que a glândula pineal do cérebro era a “sede da alma”, onde os dados dos sentidos eram recebidos (por meio do sistema nervoso) e onde começavam os movimentos corpóreos. Porém, apesar da imensidão de detalhes fisiológicos que Descartes fornece, é consensual considerar que os problemas filosóficos centrais associados a esta explicação dualista dos seres humanos como entidades híbridas feitas de um corpo físico e de uma alma imaterial não foram apropriadamente esclarecidos.

Influência

Apesar das dificuldades filosóficas que atormentaram o sistema cartesiano, o sonho de Descartes de uma compreensão unificada da realidade continuou a influenciar decisivamente, desde então, filósofos e cientistas. A sua insistência de que a via do progresso na ciência ia na direcção das explicações quantitativas foi substancialmente vindicada. A sua tentativa de construir um sistema de conhecimento que começa pelo estar ciente subjectivo de um eu consciente tem sido igualmente importante, mais que não seja porque grande parte da epistemologia do nosso tempo tem sido uma reacção contra a perspectiva autocêntrica de que parte Descartes. Quanto à teoria cartesiana da mente, é provavelmente apropriado dizer que se considera agora que a abordagem dualista levanta mais problemas do que aqueles que resolve. Porém, a insistência de Descartes de que os fenómenos da experiência consciente são recalcitrantes a explicações em termos puramente físicos continua a ser muitíssimo influente, e a plêiade de problemas profundos que levantou acerca da natureza da mente humana e da sua relação com o mundo material estão ainda muito longe de estar adequadamente resolvidos.

John Cottingham

Cambridge Dictionary of Philosophy, ed. Robert Audi, 3.ª ed. (Cambridge: Cambridge University Press, 2015), pp. 259–263.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com

terça-feira, 13 de setembro de 2022

A sabedoria de H. L. Mencken

Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 13 de setembro de 2022

A sabedoria de H. L. Mencken

Em texto publicado pelo Instituto Liberal, João Luiz Mauad presta homenagem a H. L. Mencken, nascido num 12 de setembro:

O jornalista norte-americano Henry Louis Mencken nasceu no dia 12 de setembro de 1880. Algumas frases bem atuais de Mencken:

“Sou totalmente contra todos os esforços para derrubar a liberdade de expressão, seja qual for a desculpa.”

“Eu acredito em apenas uma coisa: liberdade; mas eu não acredito em liberdade o suficiente para querer forçá-la a ninguém.”

“A única emoção permanente do homem comum é o medo – o medo do desconhecido, do complexo, do inexplicável. O que ele quer acima de tudo é segurança.”

“Todo o objetivo da política prática é manter a população alarmada (e, portanto, clamorosa de ser levada à segurança), ameaçando-a com uma série interminável de monstros, todos imaginários.”

“O demagogo é aquele que prega doutrinas que ele sabe serem falsas para os homens que ele sabe serem idiotas.”

“Os homens que o povo … admira mais extravagantemente são os mentirosos mais ousados; os homens que detestam mais violentamente são aqueles que tentam dizer a verdade.”

“As pessoas não esperam encontrar castidade em um bordel. Por que, então, esperam encontrar honestidade e humanidade no governo, um amontoado de instituições cujo modus operandi consiste em mentir, trapacear, roubar?”

“O homem mais perigoso para qualquer governo é o homem que é capaz de pensar … sem levar em conta as superstições e tabus prevalecentes. Quase inevitavelmente, ele chega à conclusão de que o governo sob o qual ele vive é desonesto, insano, intolerável.”

“O desejo de salvar a humanidade é quase sempre uma fachada falsa para o desejo de controlá-la.”

“Todo homem decente tem vergonha do governo sob o qual vive.”

“Nenhum político profissional é realmente a favor da economia pública. Ela é seu inimigo implacável e ele sabe disso. Todos os políticos profissionais dedicam-se de todo o coração ao desperdício e à corrupção. Eles são os inimigos de todo homem decente.”

“O Estado não quer apenas que você obedeça, quer fazer você querer obedecer.”

“Nós sofremos mais quando o governo está cheio de ideias.”

“Minha crença na liberdade de expressão é tão profunda que raramente sou tentado a negar isso ao outro. Tampouco faço qualquer esforço para diferenciar entre uns e outros, porque estou convencido de que a liberdade de expressão não vale nada, a menos que inclua uma franquia completa para ser tola e até mesmo maliciosa.”

“A principal diferença entre o capitalismo livre e o socialismo de Estado parece ser a seguinte: que, sob o primeiro, um homem persegue seus próprios interesses abertamente, com franqueza e honestidade, enquanto que no segundo ele o faz hipocritamente e sob falsos pretextos.”

“O homem comum não quer ser livre. Ele quer estar seguro.”

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com

sábado, 19 de março de 2022

15 lições que podemos aprender com Tolstói

Publicado originalmente no site PENSADOR

15 lições que podemos aprender com as frases mais famosas de Tolstói    

Leon Tolstói foi um grande romancista russo, que consagrou a sua trajetória com o livro Guerra e Paz, publicado em 1869.

Neste artigo, contamos um pouco da vida de Tolstói para extrair de seus principais pensamentos 15 lições valiosas para qualquer ocasião da vida.

1. Doar traz real felicidade

A alegria de fazer o bem é a única felicidade verdadeira.    

Já perto da velhice, Tolstói, desde nascença um homem muito rico, herdeiro de terras e fortunas, passou a se preocupar com as pessoas mais necessitadas. Dedicava-se a cuidar dos seus funcionários, arrecadava fundos para ajudar pessoas pobres e praticava com frequência discursos pró-caridade.

Esta frase resume bem o que teria sido o pensamento de Tolstói durante parte de sua vida: o escritor acreditava que, apenas através do altruísmo e da benfeitoria aos outros é que poderia ser feliz.

2. Temos dois aliados poderosos para vencer nossas próprias guerras

Os mais fortes de todos os guerreiros são estes dois: Tempo e Paciência.  Leon Tolstói (Guerra e Paz)    

Uma frase tão curta de Tolstói que diz muito! Em sua obra-prima, Guerra e Paz, esses dois elementos são fundamentais para compreender toda a complexidade que ele imprime em seus personagens e como costura a história da Rússia pós Era Napoleônica.

O tempo e a paciência dificilmente convivem bem, afinal as pessoas estão cada vez mais ansiosas pela resolução rápida das coisas, mas quando conseguem se alinhar: bingo! Não há combinação mais poderosa.

3. Tolstói em: “Você não é todo mundo!”

Errado não deixa de ser errado porque a maioria compartilha. Leon Tolstói (Uma Confissão)    

Imagina viver em uma época aristocrática, onde os costumes, valores e leis seriam vistos, no século 21, como absurdos. Pois é: na época em que viveu Tolstói, muitas coisas “erradas” como, por exemplo, a perseguição de pessoas não-católicas, eram um hábito comum. E nem por isso deixava de ser ruim.

Essa frase de Tolstói impõe uma verdade dura para o nosso dia: não é porque todo mundo faz que está certo. E então, quantos hábitos errados você compartilha com muita gente?

4. Revoluções internas não importantes

Todo mundo pensa em mudar o mundo, mas ninguém pensa em mudar a si mesmo. Leon Tolstói    

Uma das características mais marcantes dos livros de Tolstói é a sua capacidade de aprofundar a personalidade dos seus personagens. São pessoas muito bem desenvolvidas psicologicamente, com qualidades, defeitos, incoerências e etc.

O autor russo gostava de falar da mente humana e essa frase é a prova disso. A mensagem passada por Tolstói é simples e semelhante a que diz o pacifista indiano Mahatma Gandhi: “Seja a mudança que você quer ver no mundo”.

5. Tolstói ensina que algo sempre ocupa o lugar do amor

Respeito foi inventado para cobrir o lugar vazio onde o amor deveria estar. Leon Tolstói (Anna Karenina)    

Esta frase de Tolstói, retirada de um de seus romances mais vendidos, Anna Karenina (1877), pode parecer um pouco complicada de início, mas há uma interpretação óbvia:

Quando não existe mais amor, é natural que as pessoas falam que “respeitam” uma às outras, já percebeu? “Eu não gosto de fulano, mas respeito”. Talvez seja essa uma das lições que podemos aprender com Tolstói: uma das formas de cobrir o buraco do amor é o respeito, pelo menos.

6. Veja a mensagem de Tolstói sobre o que é amor incondicional

Quando você ama alguém, você ama a pessoa como ela é, e não como você gostaria que ela fosse.  Leon Tolstói    

Parece simples, não é? Mas é comum a idealização das pessoas que convivemos de acordo com o que achamos melhor.

A complexidade dos personagens dos livros de Tolstói deixa claro que o amor nada tem a ver com querer “moldar” as pessoas ao nosso gosto. Ou somos capazes de amar as pessoas do jeito que elas são, ou as deixamos livres para encontrar alguém que seja!

7. Não deixe que sua felicidade seja determinada por dinheiro

O dinheiro representa uma nova forma de escravidão impessoal, em lugar da antiga escravidão pessoal.  Leon Tolstói    

Mais para o fim da vida, como já dissemos, Tolstói repensou seus hábitos, e empreendeu um estilo de vida simples, longe de vícios, vegetariano, e com ideais pacifistas. Ele acreditava que essa era a forma mais plena de se existir, e que o dinheiro, em um mundo com tantas desigualdades, era mais uma forma de prender às pessoas.

Apesar de ter nascido rico, um verdadeiro conde, o autor russo viveu uma fase política em que recusava a sua origem aristocrática, criticava a burguesia e a Igreja, e pregava uma vivência onde o dinheiro não era importante.

Talvez o que precisamos refletir a partir desta frase de Tolstói é: o quanto você depende do dinheiro para viver bem e feliz?

8. Fale de forma que todas as pessoas possam compreender

Quando as pessoas falam de forma muito elaborada e sofisticada, ou querem contar uma mentira, ou querem admirar a si mesmas. Ninguém deve acreditar em tais pessoas. A fala boa é sempre clara, inteligente e compreendida por todos.  Leon Tolstói    

Para alguém que não está habituado à literatura, quando se fala em Leon Tolstói, logo se imagina livros enormes, intermináveis, chatos, difíceis de compreender.

Mas, embora Guerra e Paz, o maior livro do autor, tenha mais de mil páginas, é possível entender a história e acompanhar a narrativa sem recorrer a um dicionário! O escritor russo era polêmico em suas declarações justamente por negar o status de “canônico” (inclusive criticando a "genialidade" de seu conterrâneo, Fiódor Dostoiévski).

Em uma época russa de muito egocentrismo intelectual, o escritor pregava a simplicidade das palavras.

9. Pratique o entusiasmo nas suas atividades

O segredo da felicidade não é fazer sempre o que se quer, mas querer sempre o que se faz.  Leon Tolstói    

Precisa dizer muito? É como diz o velho ditado: ame o que faz e não terá que trabalhar um só dia na vida!

Está aí uma lição valiosa a se aprender com Tolstói: é necessário encontrar prazer em tudo que se faz.

10. Seja uma pessoa mais sensível

A piedade é uma das mais preciosas faculdades da alma humana.  Leon Tolstói    

Mais uma das frases de Tolstói que demonstram a sua vertente mais humana. Em sua biografia escrita por Rosamund Bartlett (Tolstói: a biografia (2013)), ele é descrito como um homem que incentivou russos e outras populações do mundo e deixar de lado o egoísmo e olhar para o outro com compaixão.

Ter piedade, segundo Tolstói, fazia do ser humano melhor. Você concorda?

11. Preste atenção no que é necessário para fazer bem

Antes de falar sobre o bem da satisfação das necessidades, é preciso decidir quais necessidades constituem o bem.  Leon Tolstói    

Essa lição de Tolstói diz respeito a analisar o que realmente precisamos na vida para viver bem (na vida privada e em sociedade).

Todo mundo gosta de se sentir satisfeito, mas você já parou para pensar no que te faz contente? Repensar necessidades é uma forma de separar o que é positivo e útil do que é supérfluo e desnecessário para o bem, humano, natural e social.

12. O que Tolstói diz sobre casamento? Esqueça isso de alma gêmea!

O que conta para fazer um casamento feliz não é tanto quanto você é compatível, mas como você lida com a incompatibilidade.  Leon Tolstói    

Sabe aquela história de que na hora das crises é que a gente conhece melhor nossos parceiros e parceiras? A ideia aqui é mais ou menos essa.

Saber lidar com as diferenças é, segundo Tolstói, mais importante do que acreditar que você encontrou sua “alma gêmea”. E então, o que acha desta lição de amor do romancista?

13. Tolstói e sua causa vegetariana: amar e respeitar todos os animais

Eis o que é terrível ainda mais que o sofrimento e a morte dos animais. É o fato de o homem, sem necessidade, suprimir a suprema susceptibilidade espiritual de sentir compaixão e piedade para com os seres vivos como ele. É o fato do homem se tornar cruel violando as leis da Natureza matando para comer.

Já com 50 anos de idade, Tolstói passou por uma crise espiritual que o fez rever os seus conceitos morais, religiosos e… Alimentares. Ele parou de comer carne e publicou diversos ensaios em que explicava porque considerava a morte de animais para fins de alimentação uma prática cruel.

Alguns desses escritos estão em seu livro publicado em 1885, e chamado “O Que Eu Acredito”. Nele trata da sua interpretação íntima do que era o cristianismo e como isso afetava a sua vida. Quem diria: há mais de 100 anos, um dos escritores mais celebrados do mundo, deixando uma lição de vida simples: ter compaixão e piedade para com todas as criaturas vivas.

14. Lição para a vida toda: busque evoluir, igual Pokémon!

Uma pessoa arrogante se considera perfeita. Este é o principal dano da arrogância. Isso interfere na principal tarefa de uma pessoa na vida - tornar-se uma pessoa melhor.   Leon Tolstói    

Muita gente acredita que evoluir será sempre uma tarefa pessoal dos humanos, bem como é da humanidade como um todo. Para Tolstói, era importante se abster da arrogância de achar que somos perfeitos e procurar melhorar em todos os aspectos possíveis, mesmo quando isso implica em rever as nossas certezas.

E então, quantas vezes você já fez um “check up” em si mesmo para encontrar pontos que precisam ser melhorados?

15. Não se engane: se precisou mentir, tem algo ruim aí

Toda mentira é um veneno; não há mentiras inofensivas. Só a verdade é segura. Só a verdade me dá consolo. É o único diamante inquebrável.    

E a última lição que podemos aprender com Tolstói é: esse papo de “uma mentirinha não faz mal a ninguém” é besteira. O caminho da verdade é o mais seguro, o que é capaz de construir pontes verdadeiras e relações mais firmes.

Texto reproduzido do site: pensador.com